Redpill e Bluepill: o que Matrix tem a ver com podcasts misóginos?

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Imagem: Warner/ Reprodução

Na última semana de fevereiro, as falas misóginas do influenciador Thiago Schutz se tornaram um caso de polícia. Sua participação em um podcast de entrevista colocou em cheque o uso de termos conhecidos pelos fãs da saga Matrix: red pill e blue pill.

Mas como as pílulas oferecidas ao personagem Neon de Keanu Reeves ganharam um novo contexto dentro de um movimento machista que propaga ódio contra as mulheres?

Entenda a seguir o que é o movimento Red Pill, sua relação com o filme Matrix e quais as possíveis implicações legais que visam combater a violência de gênero no Brasil.

O que é o movimento Red Pill?

Os termos "red pill" (pílula vermelha) e "blue pill" (pílula azul) são utilizados dentro de movimentos de direita e ultradireita para diferenciar os homens que "lutam contra o sistema que favorece as mulheres" dos homens que preferem viver na ignorância.

Para os homens red pill, as mulheres são interesseiras, egoístas e infiéis. Portanto, merecem ser tratadas como objetos sexuais, servindo aos desejos do homem e não tendo o direito de criar um relacionamento sério com ele.

Os homens blue pill são aqueles que não tem consciência da manipulação feminina e, por isso, aceitam namorar e casar com mulheres.

A ressignificação dos termos "red pill" e "blue pill" parte do princípio de que o feminismo prega a superioridade das mulheres, quando, na verdade, o movimento luta pela igualdade de gênero na sociedade. A maior prova de que o machismo continua vivo, mas vestindo roupagens novas, está nas pesquisas anuais sobre violência de gênero feitas por órgãos públicos e privados de relevância internacional.

No Brasil, 3 mulheres são vítimas de feminicídio a cada 1 dia, 26 mulheres sofrem agressão física por hora e 1 menina ou mulher é estuprada a cada 10 minutos. Os dados foram coletados em 2021 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entidade sem fins lucrativos que promove debates sobre temas sociais importantes, como a violência de gênero.

É válido lembrar que a cultura de violência contra a mulher vai além da agressão física. A diferença salarial, o debate sobre os direitos reprodutivos e a falta de acesso a educação de qualidade são um retrato bem diferente daquele pintado pela ideologia dos homens red pill.

Se o sistema foi feito para beneficiar as mulheres, como justificar a drástica diferença de acesso a oportunidades dado a homens e mulheres de nossa sociedade? Por esse discurso, é possível notar que o conceito de pílula do verdadeiro conhecimento de mundo tratado em Matrix sofreu uma grande deturpação pelas vertentes de extrema-direita.

Qual é a relação da misoginia com Matrix?

Em Matrix, uma das cenas icônicas do protagonista Neo se tornou um campo fértil para a misoginia: o momento em que deve escolher qual das duas pílulas oferecidas ele irá tomar. A pílula azul permitiria que Neo continuasse a viver na ilusão, enquanto a pílula vermelha o ajudaria a enxergar a realidade do mundo em que vive.

A apropriação das "pílulas de Matrix" pela ultradireita teve início em 2014, nos Estados Unidos, com o movimento Gamergate. Na época, os fóruns online 4chan e Teddit foram tomados por debates misóginos em que jogadores online criavam teorias sobre a infidelidade feminina e a suposta opressão sexual e moral que os homens precisam enfrentar, mas as mulheres não.

Tanto o elenco quanto a produção de Matrix já se posicionaram contra esse tipo de releitura do longa. Em entrevista ao UOL, a atriz Eréndira Ibarra (Lexy) afirmou que o o novo filme, "Matrix Resurrections", veio no momento certo para reverter o uso das metáforas do primeiro longa.

Lana Wachowski, diretora da saga, constantemente se manifesta pelas suas redes sociais contra os discursos de ódio que utilizam Matrix como referência.

Entenda a polêmica do Coach "Red Pill"

No dia 3 fevereiro, o coach Thiago Schutz participou de um episódio do Buteco Podcast, programa de entrevistas que se define como "papo leve de bar".

Durante a conversa, Schutz expõe opiniões machistas e cita um caso para ilustrar como "mulheres tentam moldar os homens". Ele relata que recusaria a proposta feita por uma mulher para beber cerveja, pois o coach já estaria bebendo Campari — o que comprovaria ser a atitude de um homem "autêntico" e "original".

Três dias depois, a repercussão dos cortes da gravação tomou conta das redes sociais, viralizando os termos "coach do Campari" e "calvo do Campari".

Uma das reações que mais viralizaram no Instagram foi o reels da atriz e roteirista Lívia La Gatto. No vídeo, a artista interpreta um personagem e satiriza as falas machistas de homens que propagam ódio contra as mulheres, como foi o caso de Schutz, mas sem mencionar diretamente o coach.

O vídeo viralizou na internet. A postagem original tem mais de 1 milhão de visualizações, 128 mil curtidas e 7230 comentários, além das replicações pelo Twitter, TikTok e YouTube.

Ofendido pelo conteúdo da humorista, Schutz assediou La Gatto por ligação e fez ameaças por mensagem no Instagram da atriz: "Você tem 24 horas para retirar seu conteúdo sobre mim. Depois disso é processo ou bala. Você escolhe”.

La Gatto expõe conversa em que sofre assédio de Thiago Shutz.La Gatto expõe conversa em que sofre assédio de Thiago Shutz.Fonte: Instagram @livialagatto/Captura de tela

Lívia La Gatto não cedeu às intimidações de Schutz e registrou boletim de ocorrência indo até a 27º DP da Polícia Civil de São Paulo na última terça (28) para representar criminalmente contra o acusado.

Além da atriz, outras duas mulheres relataram que sofreram o mesmo tipo de violência vindo de Schutz. Andressa Ricci diz que o influenciador tentou ligar pelo Instagram e mandou áudios repetindo as mesmas ameaças que fez para Lívia. Essa abordagem também aconteceu com Bruna Volpi após ela publicar um vídeo sobre o "homem do Campari".

O influenciador se defendeu por meio de um vídeo nas redes sociais e em seu site. Shutz diz que geralmente é mal interpretado por se comunicar usando muitas gírias e palavrões e que seria incapaz de atirar em alguém.

O influenciador ainda diz que a expressão "mete bala" significaria "vamos resolver" (a situação) e que o envio da mensagem foi uma consequência de estar sendo atacado na internet há várias semanas.

A Campari Brasil também se manifestou publicamente. A marca de bebida mencionada no podcast publicou uma nota de esclarecimento negando qualquer relação com o coach e se condenando ações preconceituosas e violentas.

Nota de esclarecimento da Campari Brasil.Nota de esclarecimento da Campari Brasil.Fonte: Instagram @camparibrasil/Captura de tela

Quem é Thiago Schutz?

Thiago ganhou fama após sua participação no reality show da Netflix, O crush perfeito, em 2020. Em seu site, Schutz se apresenta como escritor, palestrante e apresentador, cobrando por mentorias para quem tem problemas com relacionamentos ou masculinidade.

Em seu perfil do Instagram, Manual Red Pill, o influenciador posta conselhos e conteúdos preconceituosos como "o propósito do homem está sempre acima do propósito da mulher", "sua mulher pode custar mais que uma garota de programa" e "mulher que tá toda hora batendo perna pra lá e pra cá pode não funcionar para um relacionamento sério".

A imagem do ideal feminino reforçado pelas falas de Thiago Schutz é o estereótipo da mulher doce, comportada, sem filhos, que não usa roupa curta e nem frequenta baladas.

O que a lei diz sobre ataques misóginos?

Na legislação brasileira, o artigo 20 da lei 7716 pune quem comete crimes de discriminação ou preconceito devido a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional da vítima. Discursos de ódio podem ser enquadrados nessa situação e resultam em pena de reclusão.

Apesar dos ataques misóginos propagarem ódio contra as mulheres, o preconceito de gênero ainda não é previsto em lei. A advogada Camila Granado, membro da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero (CEVIGE Maringá), explica que há projetos de lei que pedem para tipificar esse preconceito de gênero, mas ainda estão em trâmite para aprovação em congresso.

A especialista em violência de gênero explica que "os dispositivos que temos atualmente estão na esfera individual, que podem configurar os atos de violência como injúria, difamação e violência psicológica, por exemplo".

A pena prevista para esses casos são detenção, mas com períodos menores daqueles de reclusão.

"As penalidades dependem do crime que a pessoa acusada cometeu. Como o ato do discurso misógino ainda não foi tipificado, é preciso analisar caso a caso para que seja estabelecida a sentença mais adequada", reitera a advogada.

Para denunciar discursos de ódio contra as mulheres, é válido conferir a Cartilha de Orientação para Vítimas de Discurso de Ódio produzido pelo Laboratório de Assessoria Jurídica em Direitos Fundamentais (LADIF) do Núcleo de Prática Jurídica da FGV Direito Rio e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

O material educativo explica o passo a passo para reconhecer se a mulher foi vítima de discurso de ódio e o que fazer para formalizar a denúncia nos órgãos competentes.

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