A série The Last of Us pinta um mundo de escolhas difíceis, onde o horror e a beleza andam de mãos dadas o tempo inteiro. Nesse sentido, é quase poético e metalinguístico que o "remake" The Last of Us Part 1 também tenha sido construído com base nessa contradição de termos.

Temporariamente exclusivo do PlayStation 5 e com uma versão de PC atualmente em desenvolvimento, o jogo é uma montanha-russa de emoções e sentimentos conflitantes, alternando momentos de deslumbre com decisões francamente estúpidas ao redor de seu conteúdo e precificação. Entenda essa questão no nosso review completo a seguir!

Um projeto que já nasceu controverso...

Se você usa bastante as redes sociais, deve ter notado que a recepção ao jogo não foi das melhores desde o seu anúncio na Summer Games Fest 2022, e o tema só foi polarizando ainda mais as pessoas nos meses seguintes conforme novas imagens foram reveladas, assim como o foco do projeto. A cada trailer, mais sobrancelhas eram levantadas mundo afora.

Muita gente foi levada a crer que a tal Part 1 seria um remake completo em todos os sentidos do termo, reimaginando o seu gameplay dos pés à cabeça da mesma forma que foi feito com os gráficos, mas as coisas não são bem assim, então já é bom colocar as suas expectativas no lugar antes de mais nada. Para ajudar, veja a primeira hora do game:

O lance é que a aventura original é um jogo de 2013, e a Part 1 vai te lembrar frequentemente disso. Afinal, o design dos mapas, o ritmo do tiroteio e da narrativa, a estrutura dos menus e upgrades, tudo se alinha com o zeitgeist de quase uma década atrás. Se na época a obra da Naughty Dog representava o pináculo de seu gênero, agora ela já é uma experiência datada por natureza.

Mas o jogo em si continua excelente!

Se você viveu esse tempo todo em uma caverna isolada da sociedade tentando se blindar de todo o papo sobre as infecções do fungo Cordyceps, ou puramente precisa refrescar a sua memória, vamos passar rapidinho pelo óbvio: The Last of Us conta a história de Joel, um pai que passa por eventos traumáticos bem quando a sociedade como a conhecemos entra em colapso.

Alguns anos depois disso, ele se vê obrigado a escoltar a jovem Ellie em mais um trabalho de rotina, e o resto... bom, é história. Ame ou odeie a série, é inegável que a narrativa concebida por Neil Druckmann deixou um legado e tanto, indo até além dos videogames, já que diversos filmes e séries passaram a usar esse arquétipo do pai traumatizado se reconectando com a vida através de uma criança. Veja como ficou o momento em que o Joel conhece a Ellie:

E claro, uma boa parte dos jogos que se propõem e oferecer experiências mais cinematográficas também embarcaram na onda, então você consegue ver as influências de Joel até mesmo no ex-brutamontes sem coração Kratos lá no God of War mais recente. Tudo isso, claro, não foi estragado de forma alguma no "remake", e ele segue oferecendo uma das histórias mais envolventes, emocionantes e bem amarradas já vistas entre os modernos blockbusters ocidentais.

A melhor forma de experimentar a jornada... Mas isso basta?

A despeito de todas as polêmicas que ainda vamos esmiuçar no decorrer da análise, é preciso deixar uma coisa bem clara quanto antes: se você, por qualquer motivo que seja, nunca jogou The Last of Us, ou se simplesmente está com vontade de zerar a campanha inteira de novo, a Part 1 te oferece hoje a melhor e mais polida forma de fazer isso.

Os clipes que circulam internet afora não fazem justiça ao quão bonito o mundo do jogo realmente está, ainda que a nossa memória possa nos enganar um pouco e enviesar esse julgamento. O que eu recomendo é fazer algo similar ao que eu mesmo fiz nas primeiras horas de teste:

Jogue (ou ao menos veja alguém jogando) um capítulo inteiro em 4K, e então procure no YouTube por um gameplay do mesmo capítulo na versão original ou na sua remasterização de PS4 e você certamente notará o quão distantes essas versões estão da mais nova. Me arrisco a dizer que o jogo de PS5 é substancialmente mais belo do que a versão de PS4 foi em relação ao PS3, ainda que esse seja o tipo de afirmação que você precisa ver para crer.

Jogando, você logo vai notar que o trabalho do estúdio girou ao redor de modernizar não apenas os modelos de personagens, os aproximando mais dos atores reais e do que vimos em The Last of Us Part 2, mas também em atualizar texturas, objetos, cores, partículas e efeitos de iluminação. Diria que a nova versão figura facilmente entre os videogames mais bonitos que já vi! Mas... será que isso basta para justificar a compra?

O lado muito feio

Ainda que o enfraquecimento da nossa moeda certamente não seja culpa da Naughty Dog, precificar esse projeto como um jogo novo de valor cheio certamente o é. Então vamos tirar logo esse elefante da sala também: cada um sabe o que faz com o seu dinheiro e não deve ser julgado por isso, mas é muito difícil sustentar que esse jogo seja coerente com os 70 dólares ou 350 reais cobrados no lançamento.

É claro que a repaginação visual foi muito bem-vinda, assim como a atualização da inteligência artificial que praticamente eliminou aqueles momentos toscos em que os seus aliados ficavam correndo e rodando ao redor dos inimigos que nem umas baratas tontas, mas é certo mesmo pagar tanto por um jogo que, essencialmente, oferece a mesma experiência que já tivemos em 2013?

Vale apontar também que o modo multiplayer também foi totalmente cortado na Part 1, então tecnicamente você está pagando mais por menos conteúdo do que tinha uma década atrás, o que considero especialmente problemático. E o que temos para compensar essa ausência, fora a recauchutada visual? Feedback háptico e gatilhos adaptáveis no Dualsense, o que diverte um pouquinho, e não muito mais que isso, além de uma galeria de extras e modo speedrun liberado após zerar pela primeira vez.

Isso é um pecado capital e difícil de defender, e justamente por isso prefiro usar "remake" entre aspas ao falar desse produto. Com tantos jogos por aí que reinventam de verdade o material base, seja adicionando modos e recursos, ou até mesmo repensando a obra original, como nos incríveis Resident Evil 2 e Final Fantasy 7 Remake, chega a ser insano colocar a Part 1 ao lado desses jogaços!

Fala mais alto que não estou ouvindo!

Além disso, mesmo tendo testado o jogo com dois headphones diferentes da HyperX e Razer, notei sérios problemas na mixagem de som. Isso era algo já existia nas versões anteriores, mas o problema me pareceu ser agravado na tentativa de modernizar para um som mais 3D, que deveria ser mais uma boa novidade do novo jogo.

Para não esmiuçar excessivamente os desafios da decupagem de áudio, na prática, o que acontece é que os personagens parecem estar sussurrando enquanto andam pelo mapa, enquanto o volume das cenas de corte é três ou quatro vezes mais alto, e isso é um inconveniente ao longo da totalidade da campanha.

Isso acontece já com as vozes em inglês, mas fica ainda pior quando você resolve experimentar a dublagem nacional, o que é uma pena se considerarmos o quão talentosos são os dubladores que emprestam as suas vozes marcantes tanto aos protagonistas como aos coadjuvantes, certamente um dos melhores elencos possíveis e que certamente mereciam muito mais capricho.

Quase exemplar em acessibilidade

Para todos os relatos problemáticos no ambiente de trabalho na Naughty Dog, ao menos há um departamento onde o estúdio faz um trabalho impecável. Falo da área de acessibilidade, ainda que eu coloque um grande asterisco e pegadinha aqui, voltando novamente à questão do preço.

Quer dizer, se o seu objetivo é permitir que o máximo de pessoas possível consiga experimentar a obra, não há como descartar o fator preço nessa equação, certo? A democratização de acesso é algo que engloba várias áreas simultaneamente, inclusive renda. Certamente é muito bacana contar com fartura de opções — mais de 60 delas! —, que vão desde descrições em áudio das cenas e ambientes até ajustes de alto contraste.

Mas cobrar tão caro das PCD por isso?! A meu ver, chega a ser grosseria, pois é algo que deveria chegar ao máximo de games possível como atualização grátis. Ainda que nesse caso em particular boa parte do motor do jogo tenha sido reinventado a fim de possibilitar os recursos inéditos, a ideia de subir o valor de um jogo em troca de ferramentas que deveriam ser grátis e padrão universal é bem questionável.

No fim das contas, se empenhar para tornar o jogo mais acessível é sim louvável, e repensar a estrutura e trabalhar mais por isso também, e é claro que essas coisas exigem mão de obra e recursos. Nas redes, vi algumas PCD afirmando que essas atualizações, por si só, fazem valer a compra do jogo para elas, então esse é sem dúvidas um argumento legítimo. Mas também vi outros tantos incomodados com o preço. Na minha opinião, o ideal seria ter plena acessibilidade sem precisar pagar tão caro por um direito tão básico.

Mas vale a pena ou não?!

Tudo isso posto na mesa, confesso que dar um veredito para esse produto é bem complicado. Por um lado, trata-se de uma das histórias mais celebradas dos videogames, agora de cara nova e com alguns dos melhores gráficos vistos na nova geração, algo ainda mais destacado pela sua sublime direção de arte.

Por outro lado, cobrar tão caro por esse tunada visual e tímidos aprimoramentos na inteligência artificial chega a ser uma ofensa ao consumidor, que investe em um produto capado do modo multiplayer e que, a grosso modo, ainda oferece uma experiência saída direto de 2013 no que diz respeito a ritmo e estrutura. Se você possui as antigas versões, dificilmente o upgrade valerá a pena. Mas se essa for a sua primeira vez com The Last of Us, sem dúvidas é a melhor porta de entrada disponível... desde que você possa pagar por ela.

"The Last of Us Part 1 é lindo e sua trama segue icônica, mas cobra muito caro pelo pouco que oferece"