Imagem de Pentiment
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Pentiment

Nota do Voxel
92

Pentiment: um mistério medieval de primeira

Cada vez mais, a narrativa tem se tornado uma questão importantíssima no mundo dos videogames. A forma que uma história é contada se tornou algo muitas vezes mais importante do que a história em si, isso graças à liberdade mecânica e criativa que jogos digitais possuem. Com isso, aventuras narrativas tem se destacado no mercado, atraindo a atenção de diversos jogadores ao redor do mundo.

E se tem uma desenvolvedora que sabe criar narrativas cativantes, esse é a Obsidian. Responsáveis por games como Star Wars Knights of the Old Republic II: The Sith Lords, South Park: The Stick of Truth e Fallout: New Vegas, ela se provou diante do público e crítica, despertando interesse até da Microsoft, que comprou o estúdio no final de 2018.

Na metade de 2022, foi anunciado Pentiment, uma aventura narrativa bem diferentona que, mesmo não conquistando o público inicialmente, deu a volta por cima e se tornou um dos melhores games do ano. Confira agora a nossa análise completa do jogo.

Uma pessoa como todos nós

Grande parte dos videogames é protagonizado por pessoas especiais, com super poderes, extrema inteligência ou grande sorte. Normalmente, esses personagens partem em grandes aventuras, com acontecimentos épicos em que a vida de todos fica por um triz, mas tudo acaba bem no final. Porém, há jogos que não seguem essa linha, acompanhando pessoas normais que, contra sua vontade, são colocadas em situações difíceis em que cada segundo conta. Pentiment se encaixa magistralmente na segunda opção.

Se passando na Alta Baviera no começo do século XVI, acompanhamos Andreas Maler, um pintor que trabalha para a abadia da cidade de Tassing e está acabando seu último trabalho antes de voltar para Nuremberg, onde se casará com uma desconhecida e finalmente se tornará um mestre artista.

Você pode escolher o background de Andreas, o que afetará escolhas nos diálogos.Você pode escolher o background de Andreas, o que afetará escolhas nos diálogos.Fonte:  Obsidian Entertainment 

Andreas pode ser como o jogador quiser: bondoso, mesquinho ou prepotente, por exemplo. Como não trabalhamos com maniqueísmos, essa questão traz diversas camadas para o personagem, tornando-o extremamente profundo e realista. O interessante é que essa profundidade não para em nosso protagonista, mas está em todos os personagens que encontramos no caminho.

O Irmão Aedoc não é muito chegado à brincadeiras, ainda que preze por todos os monges da abadia. Peter vive reclamando do trabalho e dos impostos que paga, mas sempre com a sua família em mente. A Irmã Matilda se dedica muito ao monastério, porém seus votos parecem estremecidos. Doutor Stolz cuida de todos que forem até seu consultório, mesmo odiando cada centímetro daquela cidade.

Como um livro em movimento

Essas questões ficam bem claras em todos os diálogos que temos com esses e outros habitantes da cidade e da região. Cada um tem uma origem, uma crença e um propósito. Isso tudo afeta diretamente como Andreas enxerga cada um deles, o que pode ser notado na fonte dos diálogos com cada personagem.

Alguns tipos de fontes que estão presentes no jogo.Alguns tipos de fontes que estão presentes no jogo.Fonte:  Obsidian Entertainment 

O título não conta com trabalho de voz e todas as falas são escritas em pequenos balões acima da cabeça de quem está conversando. São nesses momentos que o julgamento, muitas vezes superficial, de Andreas fica claro para nós. Por exemplo, caso a pessoa seja um clérigo, sua fonte será mais rebuscada e reta, como em livros antigos. Já se a pessoa for mais humilde, ela terá uma caligrafia cursiva mais simples. E se o Andreas mudar o pensamento sobre uma pessoa, descobrindo que um camponês é um avido leitor de textos cultos, a fonte mudará na nossa frente e assim se manterá.

Vale dizer que algumas fontes são bem mais complicadas de se ler que outras. Em um caso específico, eu tive que ativar o modo de acessibilidade que facilita a leitura dos textos para não ficar tentando adivinhar o que aquele personagem queria dizer.

Esta não é a única questão sutil e enriquecedora que a Obsidian coloca nos diálogos. A grande ideia de Pentiment é o jogador ser o autor do livro que conta a história daquele lugar e das pessoas que lá vivem. Então, a aventura se trata de uma metalinguagem de um escritor e artista contando a história de um escritor e artista. Esse tipo de questão não é novidade no mundo dos videogames, com o desenvolvedor Daniel Mullins aplicando um conceito parecido em dois de seus games, Pony Island e Inscryption. No entanto, mostra a genialidade de toda a Obsidian por colocar um subtexto que, ao ser notado, desbloqueia uma nova camada para os acontecimentos que estamos vivenciando.

O mundo dos sonhos é algo... peculiar.O mundo dos sonhos é algo... peculiar.Fonte:  Obsidian Entertainment 

Falando em diálogos e genialidade, o estúdio encontrou uma maneira extremamente inteligente para abordar temas históricos de forma fidedigna sem deixar o jogador boiando. Quando falamos de uma aventura que se passa no final da Baixa Idade Média, época em que a prensa de Gutenberg já era algo viável e Martinho Lutero compartilhava suas ideias protestantes, há nomes e acontecimentos que muito provavelmente o público não vai conhecer.

Com isso, foi adicionado um botão específico para o glossário, que pode ser ativado quando algo no texto for sublinhado em vermelho. Não só essa questão me ajudou a entender acontecimentos, conceitos e lugares que eu não fazia a menor ideia de que tinham existido, mas me ajudou a lembrar o nome das pessoas da cidade. Sempre que um habitante era citado e eu não me recordava de quem era, podia abrir o glossário e lá estava uma bela imagem de seu rosto. A minha fraca memória agradeceu muito por essa adição. E, como curiosidade, o título também conta com uma opção para referências bibliográficas do que é apresentado caso o jogador queira revisar ou saber mais sobre aquilo.

E não é somente aí que a direção de arte brilha. Na verdade, ela é um dos pontos de maior destaque do título. Toda a arte do jogo é baseado nas pinturas de livros lançados entre o século XI e XV (pelo menos segundo minhas pesquisas). Isso dá um charme a mais para a obra, tendo um visual extremamente único, além de ter um papel narrativo e imersivo.

Isso está diretamente ligado com a questão metalinguística citada anteriormente. Nós estamos vendo os desenhos que estamos fazendo se movimentarem de um lado a outro para conversar, bisbilhotar e resolver mistérios.

Esse é um dos segmentos mais bonitos de todo o jogo.Esse é um dos segmentos mais bonitos de todo o jogo.Fonte:  Obsidian Entertainment 

A idade dos personagens se reflete em seus visuais. Os traços do velho Peter são bem mais “rabiscados” e possuem menos acabamento que o de outros personagens, enquanto os da jovem Ursula são extremamente simples, como é possível ver em sua sobrancelha que parece só uma pincelada básica.

Juntando tudo isso, dá pra dizer que Pentiment é facilmente um das experiências mais imersivas lançadas ano passado. Tudo que o game apresenta dialoga entre si e, quando precisa de uma pausa para explicações, faz de forma tão sutil que a falta de conhecimento sobre algo se torna parte da experiência.

A vida imita a morte

Um dia normal de trabalho no scriptorium.Um dia normal de trabalho no scriptorium.Fonte:  Obsidian Entertainment 

Agora, o que sustenta as mais de quinze horas de gameplay é sua trama que, arrisco dizer, é uma das melhores apresentadas em um videogame em um bom tempo. Divido em três atos, acompanhamos Andreas Maler em sua difícil tarefa de investigar a morte de um barão assassinado dentro da abadia para que seu amigo Irmão Pietro não seja injustamente acusado.

A partir disso, o jogador é apresentado a uma vasta quantidade de suspeitos e linhas investigativas, tendo que conversar com os habitantes, convencê-los a revelar segredos e procurar informações que o ajude a desvendar esse mistério. Quase todo mundo da pequena Tassing terá alguma informação a oferecer, desde o bondoso padeiro até o estranho carvoeiro.

Enquanto Pentiment oferece toda essa liberdade para o jogador investigar, ele também exige que você lide com seus erros e com as consequências deles por conta de um sistema de tempo que limita as suas atividades diárias.

O jogo segue as horas canônicas, divisão do dia criada pelo cristianismo, em que temos dois momentos de trabalho, dois de alimentação e um de descanso, isso para quem não faz parte do convento, exatamente o caso do nosso protagonista. Durante o almoço e a janta, vamos até a casa de habitantes da vila para comermos e conversarmos sobre suas vidas, preocupações e saber mais sobre a região. Já durante os momentos de trabalho são os que partirmos para colher pistas.

Até o almoço é lindo nesse jogo.Até o almoço é lindo nesse jogo.Fonte:  Obsidian Entertainment 

A questão é que não temos dias suficientes para chegarmos a uma conclusão clara de quem foi o culpado. O prazo é extremamente limitado e muitas pistas levam a confirmação da inocência de alguém, tornando a experiência surpreendentemente incrível e imprevisível.

É curioso pensar que, ainda que o relógio não corra em tempo real, há uma persistente sensação de ansiedade, com uma tensão crescente pairando a região e suas ações sendo reconhecidas pelos morados. Eles admitem ter conhecimento de sua movimentação para salvar seu amigo e, em alguns casos, criticam o fato de um estrangeiro como Andreas estar se envolvendo demais com segredos obscuros de Tassing.

Ainda que eu tenha diversos elogios a essa mecânica de tempo, pontuo que um terceiro segmento de trabalho, para explorarmos mais, seria muito bem-vindo. Há diversas possibilidades que vão passar batidas pelos jogadores em sua primeira gameplay e agregariam muito no entendimento geral da trama e do universo, sem entregar todo o banquete de uma vez. A história de Martin Bauer é absolutamente incrível, mas só descobri sobre enquanto conversava com um amigo. Esse terceiro momento agregaria muito à experiência dos jogadores e foi algo que senti falta ao terminar o jogo.

Apesar disso, Pentiment poucas vezes deixa a peteca cair, envolvendo o jogador em uma teia de acontecimentos surpreendentes e que, mesmo parecendo não levar a nada, sempre entrega algo impressionante. Quem está familiarizado com outras obras de Sawyer, como Fallout: New Vegas e a duologia Pillars of Eternity, sabe que isso não é nenhuma surpresa, mas a sensação é que a Obsidian se superou.

Nada poderá ser desfeito

Tudo o que foi explicado até agora sobre a trama se refere somente ao primeiro ato, visando evitar spoilers, mas não posso deixar de falar mais sobre o impacto das suas decisões, questão importantíssima para o sucesso narrativo do game. Há um intervalo de tempo entre os acontecimentos dos três atos, intervalo suficiente para que as suas decisões se desenrolam em acontecimentos concretos.

Uma criança pode crescer sem seu pai, um pai de família pode acabar sozinho, um casal se forma e tem filhos, uma pessoa pode abandonar o convento. Mesmo com diversos desses ocorridos aconteçam de forma natural, muitos outros são por intervenção do jogador, que recomendou um homem apaixonado a buscar seus sonhos, não dedurou uma pessoa querida por outra ou até contou uma história assustadora para uma jovem.

Até o menor dos diálogos pode render consequências ao jogador.Até o menor dos diálogos pode render consequências ao jogador.Fonte:  Obsidian Entertainment 

A vida dos habitantes de Tassing será efetivamente afetada pelo que falamos e omitimos, pelas nossas ações e pelo que revelamos. Sendo assim, estamos escrevendo a história de um escritor, pintamos a história de um pintor, escolhemos como e para onde tudo se encaminhará. Somos mais que observadores daquele universo, Pentiment nos dá o poder nas mãos para decidir o destino de muita gente. Eu não me recordo a última vez que um jogo me deu tão pouco poder e tanta responsabilidade simultaneamente. Saber que a tristeza ou felicidade de algum personagem é resultado das minhas atitudes é algo que mexe com o âmago do meu ser, sendo inevitável realizar comparações com o dia-a-dia do nosso mundo e as relações que temos com nossos entes queridos.

Porém, tudo isso dá uma leve esfriada no começo do terceiro ato. Com um ponto de partida lento, que mais parece um recomeço, e poucos momentos intensos, o final do jogo pode decepcionar aqueles que esperam uma continuação frenética do fim do segundo ato.

Felizmente, essa decepção dura pouco. A última hora do game apresenta um plot twist incrível e explicações que fizeram a minha cabeça explodir, isso tudo sem invocar o clássico Deus ex machina. Tudo estava debaixo do nosso nariz o tempo todo, só não fomos capazes de enxergar.

Vale a pena?

Pentiment é tanto um dos melhores jogos de 2022 quanto um dos melhores lançados pela Xbox em um bom tempo. Sua trama é profunda, complexa e mundana, lotada de escolhas difíceis que comprometerão a vida não só de uma pessoa e de sua família, mas de toda uma cidade. Os personagens que encontramos no caminho transbordam personalidade e deixam explicito como enxergam o mundo ao redor, facilitando o nosso entendimento e nos fazendo perceber que diferenciar o certo e o errado é uma questão puramente subjetiva.

A direção de arte é um de seus maiores triunfos, nos afundando profundamente no final da Idade Média e, simultaneamente, apresentado traços únicos pouco ou até nunca visto no mundo dos videogames. Se há um jogo que representa bem a genialidade da Obsidian e de Josh Sawyer, esse é Pentiment.

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Pontos Positivos
  • História cativante, misteriosa e divertida
  • Cartel de personagens carismáticos
  • Direção de arte espetacular
  • Sistema de tempo angustiante
  • Consequências reais das suas decisões
Pontos Negativos
  • Algumas fontes são difíceis de ler
  • Só dois segmentos de tempo para trabalho são limitantes até demais
  • Terceiro ato começa de forma muito lenta