Coluna: quais são os limites para a criatividade?

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Caso você pretenda colocar, agora, um jogo nas prateleiras — sejam virtuais ou físicas —, há uma série de passos necessários. Considerando que já exista um conceito bem definido, será preciso levantar dinheiro de algum lugar e, uma vez que o projeto esteja concluído, uma publicadora ainda precisará ser convencida do potencial econômico da proposta — considerando-se um jogo de médio/grande porte.

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Isso leva à discussão já incrivelmente batida do “indie vs. blockbuster”. É fácil sintetizar o que o senso-comum normalmente diz sobre ambos os formatos:

  • Blockbuster: muito dinheiro envolvido, sempre com grandes riscos. Normalmente focado em um formato padronizado — embora de alta qualidade técnica —, cujo sucesso mercadológico possa ser razoavelmente previsto antes de sujeitar qualquer coisa à avaliação do público. Depende fortemente de exposições marqueteiras.
  • Indie: pouco ou praticamente nenhum dinheiro envolvido em grande parte dos casos, com riscos moderados (vale não confundir com o chamado “hobbismo”). Normalmente se vale de abordagens “fora da casinha”, compensando a falta de um ferramental técnico de ponta com abordagens ditas “criativas”. Depende muito pouco de campanhas de marketing — pelo menos no início — e se arrisca de bom grado a levar bordoada do público.

Mas, não, o que me interessa aqui não é o tipo de discussão que antepõe Braid e Call of Duty em lados opostos de um ringue. Na verdade, independentemente do formato adotado para o desenvolvimento, me parece que sempre haverá alguns limites dentro dos quais a criatividade do autor deve trabalhar.

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Quais são esses limites? Serão eles sempre negativos? Me parece que essas perguntas combinam mais. Vamos adiante.

A prisão de uma marca consagrada

Gostaria de evocar aqui um fato que me chamou bastante atenção há alguns anos, quando a Sucker Punch provocava sua audiência com as primeiras imagens de inFamous 2. Até certo ponto, tudo nos conformes. Havia poderes, havia uma cidade ampla para ser reduzida a escombros pela interação de engines poderosas e pelo trabalho primoroso de uma folha de pagamento bastante onerosa.

Mas, então, a desenvolvedora resolveu mostrar o seu novo Cole Macgrath. O sujeito com traços mais delicados que foi prontamente escorraçado pela comunidade de fãs à época — que viu na existência de cabelos sobre a cabeça do herói o cúmulo do ultraje e da heresia.

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É de se imaginar que, naquele momento, a Sucker Punch tenha experimentado algo entre a lisonja e a limitação. Ok, é verdade que o primeiro game não é propriamente a proposta mais criativa da sétima geração de consoles, mas certamente havia algo de novo ali — algo que só estava ali porque antes não havia inFamous.

“Me arrume outro final!”

Ok, reconheço que esta deve ser a terceira ou quarta coluna em que eu abordo essa questão. Mas isso deve ser desculpável já que, convenhamos, trata-se de algo emblemático.

Independentemente de o final original de Mass Effect 3 ter sido ou não fruto de um trabalho apressado/preguiçoso, as proporções tomada pela indignação de um público com expectativas ali foi algo realmente impressionante. Tanto que, talvez pela primeira vez na história do entretenimento eletrônico, uma desenvolvedora se viu forçada a dar o braço a torcer, fornecendo um desfecho que foi considerado mais condizente com o andamento da série.

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A criatividade? Não, não havia espaço para isso, não ali. Talvez ela tenha sido exercitada — mesmo que dentro de limites mercadológicos bastante estreitos — durante a concepção do primeiro Mass Effect, lá na época em que o Xbox 360 dava seus primeiros passos. Mas ali não havia mais esse espaço, conforme a BioWare era colocada no mesmo paradoxo de tantas outras desenvolvedoras: era preciso inovar... Desde que tudo se mantivesse igual.

Criatividade diluída

Após o anúncio de Resident Evil 6, a Capcom se empenhou em convencê-lo que, ali, se encontraria o suprassumo das apostas zumbis recentes. Não, nada de falar sobre novas mecânicas e soluções estéticas diferenciada. Muito “melhor”. Havia números.

Foram 150 pessoas envolvidas diretamente, embora a produção tenha mobilizado “mais de 600”. Os dados impressionaram, é verdade. O problema é que o mesmo não se pode dizer do jogo finalizado — apenas um título medíocre, cheio de peças que praticamente não se encaixavam.

Isso faz pensar em uma das maiores dificuldades do desenvolvimento atual: a “visão” do projeto. Quer dizer, em meio às centenas de pessoas envolvidas em Resident Evil 6 — e em tantos outros jogos de grande porte —, quem realmente detém o conceito central, a inspiração ou a baliza que deve, originalmente, ter servido de molde? Algum diretor, talvez?

Difícil acreditar na extensão disso. Igualmente, é difícil acreditar que o total aí seja realmente igual à soma das partes — e, nesse ponto, sim, me parece razoável dar alguns pontos ao estilo mais autoral do desenvolvimento independente.

Ok, isso talvez faça parecer que o Santo Graal dos designers de game se encontra lá pelas paragens dos jogos independentes — onde o desenvolvimento é livre e a grama é verdejante. Vale olhar isso mais de perto.

A falta de acesso a ferramentas adequadas

Imagine, por um momento, que um dos grandes romances da História tivesse sido desenvolvido a várias mãos. Talvez o fabuloso “Crime e Castigo”. Será que a jornada de autoconhecimento e questionamento moral de Raskólnikov teria a mesma intensidade se o bom Dostoiévski tivesse relegado, digamos, os trechos de ambientação a um autor subordinado? Difícil acreditar.

A analogia parece manca, não? De fato. E esse é o ponto.

Há mais dimensões envolvidas com a produção de um jogo, não haja dúvida. Talvez, em um cenário ideal, um único sujeito visionário pudesse materializar um conceito já na forma de boas mecânicas de jogo e polígonos virtuais de arestas devidamente aparadas. Há um bom exemplo que pode deixar isso mais claro.

O caso Lucius

A proposta de Lucius deixou muita gente de orelhas em pé quando foi anunciada pela Shiver Games. Na verdade, lembro perfeitamente que a imoralidade da trama fez muita gente acreditar que se tratava de uma espécie de “trollagem” ou algo assim.

Não mesmo. O jogo envolvia mesmo menino que era alvo do próprio “Tinhoso”, resultado de um pacto realizado por seu avô muitos anos antes. Dessa forma, ele passava a matar diversas pessoas da família — embora não sem, antes, revelar os vícios terríveis que se ocultava sob as aparências.

Soa bem, não? Parece mesmo algo projetado para quebrar paradigmas, vanguardista mesmo. O problema é que esse belo terror psicológico acabou naufragando em uma série de falhas gráficas e de jogabilidade grosseiras — algo que dificilmente seria encontrado em um blockbuster.

Não, não se trata de “jogar o bebê com a água do banho” aqui. Ocorre é o orçamento mirrado e a pequena equipe envolvida no desenvolvimento de Lucius — para todos os efeitos, um jogo independente — acabou por gerar limitações técnicas tão destacadas que se tornou praticamente impossível fazer “vista grossa” para apreciar a boa história.

Limites saudáveis

Tenho que confessar que normalmente fujo feito o Diabo da Cruz de soluções do tipo “tem pra todo mundo” ou “cada estilo tem o seu espaço” — as quais normalmente ganham pontos em diplomacia mas falham em lançar qualquer nova luz sobre uma questão. Mas aqui parece necessário abrir uma exceção.

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A limitação parece realmente uma dimensão inescapável, independentemente do formato escolhido. Blockbusters são limitados por formatos econômicos consolidados, enquanto os indies devem manter ainda por um bom tempo suas restrições no que se refere a prodígios técnicos.

Se isso é ruim? Não necessariamente. GTA V, Fallout 3Batman: Arkham City provam que é possível desenvolver algo de qualidade enquanto se atenta para questões mercadológicas. Por outro lado, Braid, echochrome e To The Moon mostram que a criatividade ainda o pequeno playground indie uma via de acesso incrivelmente importante.

“Imagine uma árvore jovem”

Fonte da imagem: Reprodução/Wired

Em outras palavras, talvez os limites sejam mesmo, em grande parte, responsáveis por impulsionar a criatividade humana. “A imposição de limites não sufoca a criatividade”, diz o editor da Wired, Scott Dadich, “ela a promove”. Para ele, as restrições “oferecem uma oportunidade sem paralelo para o crescimento e a inovação”. Há até uma boa analogia:

“Imagine uma árvore jovem. Com água e sol, ela pode crescer e se tornar forte. Mas inclua podas cuidadosas no início do seu desenvolvimento, e a árvore se tornará ainda mais forte e alta, e mais rapidamente.”

Portanto, dois vivas aos bons limites... E, sobretudo, ao que as boas cabeças conseguem fazer com eles.

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