TecMundo conhece de perto San Pedro Valley, o “Vale do Silício brasileiro”

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O bairro São Pedro, localizado na Zona Sul de Belo Horizonte, sempre foi conhecido por ainda manter aquele clima residencial mesmo diante de uma agitada vida noturna. Desde 2011, a região e os vizinhos Santo Antônio e Savassi passaram a abrigar centenas de jovens talentosos, loucos pelo universo digital e ávidos por novidades. Esses empreendedores e profissionais de design, marketing, tecnologia, comunicação e áreas relacionadas povoaram dezenas de prédios nos arredores. E isso tudo se tornou San Pedro Valley (SPV), um dos principais — senão o maior — “Vales do Silício brasileiros”. O TecMundo foi até lá para conhecer de perto as startups que estão fazendo história, tanto no mercado brasileiro quanto no cenário internacional.

Nome San Pedro Valley veio de uma brincadeira e inicialmente era BH Valley

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E por que “San Pedro Valley”? Bem, a óbvia referência é à região Sul de São Francisco, nos Estados Unidos, onde pipocaram milhares de empresas de circuitos eletrônicos — o silício é amplamente usado em placas de computadores — a partir de 1950. Edmar Ferreira, da Rock Content, lembra bem como a denominação veio para ficar de vez. Por volta de 2004 e 2005, ele e outros amigos que começavam a tocar seus negócios por ali falaram sobre o assunto, incluindo Bernardo Porto, um dos fundadores do conhecido software de análise DeskMetrics, e Mateus Bicalho, um dos criadores da plataforma de negócios Hotmart.

“A gente se encontrou na padaria um dia e o Bernardo brincou que éramos o ‘novo Vale do Silício’, que éramos o ‘BH Valley’. E o Mateus falou ‘esse nome BH Valley é muito ruim, tem que ser outra coisa, tem que ser um San Pedro Valley’. Aí saiu, ficou. Ficou San Pedro Valley”, recorda Ferreira.

Panorama animador

Catapultada pela fama depois de ganhar um escritório da Google em seus arredores, a comunidade SPV reúne atualmente mais de 300 startups, que têm em seu cotidiano o mesmo ambiente de trabalho leve e descolado da Gigante das Buscas, sonho de 10 entre 10 jovens aspirantes ao universo da tecnologia.

Para falar melhor sobre o nascimento, o desenvolvimento, o momento atual e os próximos passos, o TecMundo reuniu representantes de algumas das companhias mais importantes desse cenário:

  • Edmar Ferreira, da Rock Content, empresa de marketing de conteúdo
  • Gustavo Caetano, da Samba Tech, especializada em tecnologia para vídeos
  • Mateus Bicalho, da Hotmart, plataforma de negócios digitais
  • Rodrigo Cartacho, da Sympla, administradora, promotora e vendedora online de eventos
  • Lucas Marques, da Méliuz, desenvolvedora de programas de cashback

Começo entre amigos

As histórias de algumas startups se confundem com o início do próprio SPV. A Samba Tech pode ser considerada pioneira por ali, pois deu os primeiros passos em 2004, como uma “empresa para vender joguinhos de celular”. Estudava no Rio de Janeiro e tal e decidi vir para Belo Horizonte porque era mais barato. Consegui um investimento de US$ 100 mil e vim para cá, montei uma salinha de 20 metros quadrados”, lembra Caetano.

Em vez de mineradoras e montadoras de veículos, as grandes oportunidades pareciam vir das pequenas iniciativas no ramo da tecnologia

Depois que as operadoras passaram a cobrar mais lucros sobre seus trabalhos, ele mudou o foco para o crescente interesse do público pelos vídeos do YouTube, novidade que se popularizava no Brasil no final dos anos 2000. “A gente veio com a ideia de montar uma plataforma de vídeos para quem não queria usar o YouTube na época. Nosso primeiro público-alvo eram as grandes emissoras de televisão e a gente pegou oito das dez grandes emissoras.”

Em destaque Gustavo Caetano, da Samba Tech

O negócio aumentou e logo novos jovens empreendedores passaram a mudar a “cara” dos negócios em Belo Horizonte: em vez de mineradoras e montadoras de veículos, as grandes oportunidades pareciam vir das pequenas iniciativas no ramo da tecnologia. E o grande diferencial foi que muitos dos estudantes e interessados formaram uma comunidade que permitiu gerar um cenário apto para o nascimento do SPV.

“A nova geração que veio em seguida já veio superconectada e aberta. Eu acho que o grande diferencial, já falando um pouco do nosso ecossistema, é essa abertura que a gente tem entre as empresas. Esse tipo de amizade que a gente tem aqui é verdadeiro e constante. O tempo inteiro.”

Os primeiros passos

Já na virada dos anos 2010, a disseminação de startups era ampla nos Estados Unidos, assim como livros e notícias a respeito. No Brasil, a coisa ainda estava caminhando lentamente, algo que mudaria aos poucos, com a ajuda da criação do SPV. Ferreira, da Rock Content, remonta os primeiros dias de sua investida inicial na Everwrite e outra companhia de destaque atualmente, a Hotmart.

A paixão nerd pelo jogo de cartas colecionáveis ajudou o grupo a se unir inicialmente

“A gente resolveu dividir uma salinha para as duas empresas, a Hotmart e a Everwrite, ali atrás do Pátio Savassi. Ambas começaram ali. A gente conseguia ver nos olhos uns dos outros ‘não estou acreditando, não só estamos desempregados e como vamos trabalhar aqui?’”, ri.

Edmar Ferreira (centro), da Rock Content, ao lado de Mateus Bicalho (direita), da Hotmart

Bicalho, da Hotmart, complementa. “A empresa surgiu no bairro São Pedro. Essa salinha que a gente falou. E nessa época também várias outras startups estavam bombando. A Samba (Tech) já estava na cena havia muito tempo, uma grande incentivadora desde o começo. Então, já existia uma cena borbulhando, a Sympla começando junto naquela época também.”

E uma paixão nerd em comum acabou aproximando muita gente no local: o game de cards colecionáveis Magic, The Gathering. “A gente jogava lá na sala. E foi engraçado, acabou calhando que dividia esse espaço com amigos que tinham startups também, o Bernardo Porto, muitas pessoas”, diz Ferreira. “Ganhamos vários prêmios naquele ano. Naquela mesma salinha, a Hotmart conquistou o ‘Buscapé, sua ideia vale R$ 1 milhão’, e a gente, da Everwrite, recebeu o Prêmio Brasil Inovação.”

Concorrência em prol da evolução

Segundo os executivos, a disputa sadia no SPV ajudou todos de formas distintas e de uma maneira que fortaleceu o mercado e a própria formação dos profissionais, em geral. “Acho que uma das coisas mais interessantes é que a gente começou a preparar mão de obra para trabalhar em startup, porque não tinha antes. Se você procurasse um gerente de produto para trabalhar com produto digital, não existia. Hoje as pessoas se prepararam porque sabem que há mercado para isso aqui. Então, as empresas em conjunto acabaram criando um mercado que não existia em Belo Horizonte”, comenta Caetano.

A progressão de carreira das pessoas que entram nas startups é assustadora, tem cara que entra como estagiário e hoje já é sócio

A geração de empregos ajudou a impulsionar a economia local, e hoje os jovens trabalhadores já miram o setor de tecnologia em vez das tradicionais companhias mineradoras ou montadoras de veículos. "Quando você olha a remuneração média, ela é maior do que a população em geral, porque envolve tecnologia e conhecimento mais específico. A progressão de carreira das pessoas que entram nas startups é assustadora. A gente tem um cara no Méliuz que entrou como estagiário e hoje já é sócio. Só nesta mesa aqui são mais de 500 empregos gerados por nossas empresas”, contabiliza Marques.

Lucas Marques (esquerda), do Méliuz, e Rodrigo Cartacho, da Sympla

Cartacho morou fora do Brasil por muito tempo e retornou em 2012, para lançar a Sympla. Segundo o empreendedor, se não fosse pela comunidade criada em torno do SPV, seria muito difícil sua caminhada até o sucesso da empresa. “Quando cheguei aqui, não entendia absolutamente nada de startups. E as pessoas que me ensinaram estão sentadas nesta mesa aqui hoje. Eu vinha de uma experiência muito forte de empreendedorismo, mas não necessariamente aplicada a isso”, recorda.

Esse ambiente de concorrência leal e de ajuda mútua vem também mudando a concentração de investimentos, que antes eram muito direcionados para São Paulo. “Todo mundo passou por isso quando começou: ao conversar com investidor, a maioria dos fundos está em São Paulo. Antigamente, você conversava com os caras e eles falavam: ‘por que BH? Por que você tá em BH? Por que você não muda para São Paulo?’ Hoje ninguém estranha mais. ‘Ah, BH? Beleza!’”, destaca Ferreira.

Importância do governo

Ainda que o brasileiro não esteja tão acostumado com esse tipo de suporte, a comunidade do SPV ganhou grande impulso com o apoio da administração estadual, a exemplo do programa de incentivo à inovação Startups and Entrepreneurship Ecosystem Development (SEED, ou “Desenvolvimento de Ecossistema para Empreendedores e Startups”).

As iniciativas do governo, do Sebrae ou da FIEMG começaram a escutar mais os empreendedores

“Governos de partidos de oposição — acho que pela primeira vez na História — deram continuidade a um programa bacana, que foi o SEED, que foi criado no governo anterior. São escolhidas 40 startups, não só de Minas, mas do mundo inteiro, que vêm para BH e recebem espaço, mentoria e recursos para se desenvolver e, se possível, ficar por aqui”, frisa Marques. “Inscrevi uma startup lá, que era o Projeto Brasil, a gente até estava indo muito bem, e nessa época o Israel (Samen) e o Ofli (Guimarães) me chamaram para entrar no Méliuz, ser sócio lá. Tudo o que eu aprendi durante seis meses, consegui usar e ajudar no Méliuz.”

Para Cartacho, dar ouvidos aos empreendedores tem sido uma das práticas mais interessantes aplicadas pelos órgãos de apoio aos aspirantes. “Todas essas iniciativas, tanto do SEED do governo anterior e do atual, assim como o Sebrae ou a FIEMG (Federação das Indústrias de Minas Gerais), todos eles, antes de começar fazem a mesma coisa: escutar os empreendedores. Eles têm esse cuidado de entender que são fomentadores e quem entende dos problemas e gargalos são os empreendedores de startups que estão aqui. Acho que isso é uma receita de sucesso, a razão de os programas daqui terem dado tão certo.”

E o sucesso conjunto vem também com a iniciativa de quem ajuda os que estão começando. “As próprias startups mais antigas, como nós, participam e ajudam nos processos de aceleração do próprio SEED. Já participei e sou mentor também”, anota Bicalho. “A gente dedica tempo para isso, dá palestras, oferece mentoria e tudo mais. Isso é uma coisa que contribui para criar e formar a nova geração. E a gente não tem nenhum ganho direto”, comenta Caetano.

E as instituições de ensino?

A maior referência da região do SPV é a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que ainda flerta discretamente com o setor, mas já apresenta resultados consideráveis. “Os meninos do San Pedro Valley criaram uma aula de empreendedorismo na UFMG. Só para vocês terem uma noção, essas aulas têm 150 alunos e nenhum falta, mesmo sem chamada, e tiveram mais de 600 ou 700 candidatos. Daqui a pouco, vamos fazer uma aula de empreendedorismo no Mineirão. Isso é maravilhoso”, comemora Marques.

Além da alta procura, o tema também tem se desenvolvido com mais profundidade nas universidades. “No ano passado mesmo, eu recebi um professor da UFMG já contribuindo para a tese de doutorado de um aluno lá, por exemplo, utilizando nossa base de códigos para validar algumas teses”, lembra Bicalho.

A popularização das startups também gerou uma grande demanda nas salas de aula e vem aí uma nova leva de jovens loucos para ter seu próprio negócio milionário. “Acho que vai começar a acontecer muito além da própria faculdade, e espero que seja nos próximos anos, algo que você vê muito lá no Vale do Silício (nos EUA), mas ainda pouco no Brasil, que é a formação de uma segunda geração a partir das nossas empresas”, reflete Ferreira.

Incentivo ao perfil empreendedor

Uma das coisas que mais chamam a atenção das pessoas que querem trabalhar com startups e na área da tecnologia atualmente é a mobilidade hierárquica dentro da empresa. O modelo de negócios que a Google e o Facebook difundiram permite que os colaboradores tenham um papel mais atuante do que há 20 ou 30 anos.

 Nesse novo tipo de empresa, o cara se sente um empreendedor também. Todo mundo se sente parte do nosso negócio

E isso muda até mesmo o tempo em que um funcionário permanece no mesmo grupo. “Nosso modelo de gestão dá muito empoderamento para o colaborador. A gente não é do tipo ‘ah todo mundo aqui é pau mandado, eu que mando’. Nesse novo tipo de empresa, o cara se sente um empreendedor também. Todo mundo se sente parte do nosso negócio. É natural que o cara chegue e fale ‘quem sabe eu não monto meu negócio também’”, explica Caetano.

E se houve mudança de paradigma no relacionamento interno, a oferta de alguns tipos de profissionais no Brasil ainda é escassa. “Por exemplo, você está escalando de 100 a 200 funcionários e precisa de um vice-presidente de vendas. Depois de outro que levou de 300 para mil funcionários. No Brasil, quantas pessoas já viram uma empresinha de 3 ir para mil funcionários? É o que a gente está formando agora”, afirma Ferreira.

Matt Doyon veio do Vale do Silício para trabalhar em San Pedro Valley

Por isso, algumas companhias do SPV estão até mesmo levando gente do Vale do Silício para Belo Horizonte. A Rock Content, por exemplo, importou Matt Doyon, que passou pela Hubspot, para ser vice-presidente de vendas e sócio. “O Brasil forma bons executivos. Temos ótimos executivos de grandes empresas aqui. O problema da startup é que ela é uma pequena empresa que ela vai ser uma grande empresa um dia. E as habilidades nesse caminho não são para gerenciar nem uma nem outra. É uma criatura meio híbrida, tipo fase de crescimento, então, é hiper-rápido. É um processo difícil de você acompanhar”, conta Ferreira.

“Não é fazer o produto. É criar a máquina que faz, pensa e atinge o produto. Então é um trabalho um pouco diferente no começo. O que você faz nos 6 primeiros meses na startup tende a ser diferente do que você vai fazer do mês 7 para frente.”

O próximo grande desafio

E agora, qual é o passo seguinte para a comunidade de startups do SPV? Algumas empresas, como a Sympla e a Hotmart, já estão expandindo seus negócios para outros países. Ter mais apoio do governo federal poderia impulsionar esse crescimento.

“Acho que o governo poderia modernizar as leis, por exemplo. No Brasil, às vezes muitas leis não contemplam um cenário de internet. As leis trabalhistas, então, nem se fala… Acho que é um desafio do governo mesmo se adequar essa nova realidade”, destaca Bicalho. “Quando você olha todos os grandes mercados que existem aqui, de saúde, de educação, de segurança, de entretenimento... o Brasil ainda é muito carente de soluções”, complementa Caetano.

De forma alguma eu teria vontade de ir para o Vale do Silício neste momento. Acho que o Brasil está em uma excelente fase para empreender

E será que os profissionais daqui deixariam São Pedro e Savassi, Belo Horizonte, para levar suas companhias de sucesso para o Vale do Silício dos EUA? “Quando você vai no Vale do Silício tem um sonho, mas a competição lá é gigantesca. Acho que lá a briga é muito mais pesada e aqui a gente tem capacidade de montar negócios que vão ficar muito grandes e globais a partir daqui”, expõe Caetano.

“De forma alguma eu teria vontade de ir para o Vale do Silício neste momento. Acho que o Brasil está em uma excelente fase para empreender. Lá é uma selva de leões e aqui os primeiros leões ainda estão aparecendo. Então, para que eu vou me mudar para lá agora?”, questiona Bicalho.

Todo o grupo em uma rara reunião: Rodrigo Cartacho (Sympla), Edmar Ferreira (Rock Content), Mateus Bicalho (Hotmart), Lucas Marques (Méliuz) e Gustavo Caetano (Samba Tech)

E Marques resume o pensamento de todos que estão crescendo por aqui. “O Fundador do Alibaba, Jack Ma, é uma inspiração. Esse é um cara que saiu do nada, era professor particular de inglês e não sabia nem uma linha de código. Em 1999, e fez um dos maiores IPO (Initial Public Offering, que é a abertura de capital na Bolsa de Valores) da História. E ele dizia “a gente é um jacaré no rio Yangtze, que é um rio famoso na China’. Aqui, a gente é o jacaré, a capivara na Lagoa da Pampulha. Aqui é a gente que manda e, daqui a pouco, quando esses caras menos notarem, estaremos indo para lá os ‘comprar’.”

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