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Segurança

A VPN não resgatará os adolescentes australianos | Coluna

A Austrália baniu menores de 16 anos das redes sociais e autoridades se anteciparam ao uso de VPNs ao criar métodos que dificultam o uso dessa técnica consagrada de burla.

Avatar do(a) autor(a): Thiago Ayub - Colunista

schedule17/12/2025, às 19:15

Até 2025, somente um fator faria um serviço online perder audiência: a substituição por um competidor, ou melhor, ou mais barato, ou que caísse no gosto popular. Independentemente do caso, era reflexo de uma escolha do usuário. 

Esse ano um novo fator entra em jogo: leis têm banido usuários de plataformas ou pondo obstáculos em seu acesso. No Reino Unido, o PornHub perdeu 75% dos usuários por uma lei análoga à Lei Felca e na Austrália todos os menores de 16 foram banidos das redes sociais. O retorno dos jovens australianos por meio de subterfúgios como VPN será tão fácil como muitos imaginam?

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“Pense nas crianças” (“Think of the children”) é um cliché falacioso tão repetitivo que ganhou uma página na Wikipédia inglesa. É um apelo emocional que apesar de nem sempre o ser, é frequentemente utilizado para ocultar a real motivação do que se propõe. A alegação dos legisladores da Austrália de que o Online Safety Amendment serve para proteger crianças e adolescentes parece tão verídica quanto a de que o Outback serve culinária australiana.

Assim como na coluna passada vimos o quão irrazoáveis são os protestos contra data centers no Brasil – como se fossem uma ameaça ao meio ambiente, enquanto apenas correspondem a 0,003% do consumo de água no país (dados da Brasscom –, e em uma coluna mais antiga vimos os efeitos colaterais indesejados da Lei Felca, essa pauta australiana também está recheada de e-pocrisia, uma hipocrisia eletrônica.

O eSafety, órgão regulador sobre o tema, fez escolhas sobre o que banir e o que permitir que destoem dos demais países que exilam jovens internautas. Enquanto a Wikipédia foi proibida a menores no Reino Unido e provavelmente também será no Brasil pela Lei Felca, a enciclopédia segue assegurada aos australianos. Serviços de mensagem como WhatsApp e Messenger também estão liberados, mesmo que facilitem conversar por chat sem a supervisão dos pais.

O LinkedIn, a rede social de textos de autoria do ChatGPT, e o BlueSky foram avaliados como de baixo risco e ficaram fora do banimento devido ao mecanismo de busca de empregos e a pouca audiência, respectivamente. Na lista de exceções, a presença de duas é espantosa: Discord e Roblox. Ambos são conhecidos pela ineficácia de seus gestores no bloqueio de usuários que praticam cyberbullying e pedofilia e representam um risco concreto para seus usuários menores de idade. Mas seguirão liberados para menores de idade na Austrália.

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Anthony Albanese e Macy Neyland, em entrevista.

A imprensa local fez uma ampla cobertura sobre essa lei diante da sua entrada em vigor no último dia 10 e dela pudemos colher essa pérola televisionada. O primeiro-ministro Anthony Albanese visitou uma escola de ensino médio e o telejornal NewsDay transmitiu o seguinte trecho da conversa dele com a estudante Macy Neyland, de 15 anos:

  • Macy: “É uma ideia ruim porque encontraremos alternativas de qualquer jeito.”
  • Primeiro-ministro: “Bem, elas serão descobertas também” – e sorri.

O sorriso de Albanese tem lastro legal. No documento de autoria da eSafety e de título “Social Media Minimum Age Regulatory Guidance” encontraremos no item 2.4 algumas tabelas de recomendações do órgão regulador de métodos e indicadores a serem usados pelas plataformas para impedir que menores de 16 anos australianos tenham conta em redes sociais. São elas:

Sinais relacionados à localização

  • Histórico do endereço IP indicando que a pessoa reside habitualmente na Austrália.
  • GPS ou outros serviços de localização indicando que a pessoa reside habitualmente na Austrália.
  • Idioma do dispositivo e configurações de fuso  horário indicando que a pessoa reside habitualmente na Austrália.
  • Identificador do dispositivo indicando que a pessoa reside habitualmente na Austrália.
  • Número de telefone indicando que a pessoa reside habitualmente na Austrália.
  • Loja de aplicativos/sistema operacional/configurações da conta indicando que a pessoa reside habitualmente na Austrália.
  • Fotos/marcações/conexões/engajamento/atividade indicando que a pessoa reside habitualmente na Austrália.
  • Monitoramento de múltiplas contas a partir do mesmo dispositivo ou endereço IP.
  • Integração de serviços de detecção de VPN e APIs de inteligência de IP para sinalizar e restringir faixas de IP de alto risco de serem uma VPN ou similar.
    Verificar a inconsistência entre geolocalização do dispositivo e do endereço IP.
  • Implementação de sistemas para detectar e investigar a troca suspeita de endereço IP.

 

Sinais relacionados à idade

  • Idade de existência da conta.
  • Engajamento com conteúdo voltado para crianças ou pré-adolescentes/início da adolescência.
  • Análise linguística/processamento de linguagem indicando que o usuário final é provavelmente uma criança.
  • Análise de informações/postagens fornecidas pelo usuário final (por exemplo, análise de texto indicando a idade).
  • Análise de conteúdo visual (por exemplo, análise de idade facial realizada em fotos e vídeos enviados para a plataforma).
  • Análise de áudio (por exemplo, estimativa de idade baseada na voz).
  • Padrões de atividade consistentes com horários escolares.
  • Conexões com outros usuários finais que aparentam ter menos de 16 anos.
  • Participação em grupos, fóruns ou comunidades voltadas para jovens.

Sempre que falo desse assunto de bloqueios e restrições no acesso à Internet, surgem comentadores dizendo “Que usem VPN!”, semelhante à Maria Antonieta dizendo “Que comam brioches!”.

Observando essa lista de métodos, é pouquíssimo provável que as VPNs resgatarão os adolescentes australianos exilados das redes sociais, pois a presença deles será detectada por outros indicadores além do mero endereço IP, como a geolocalização contida nos arquivos de foto, no conteúdo que engajam, no DDI do número de telefone, na geolocalização por GPS do aparelho e até no modo de se escrever ou tom de voz.

As empresas que de forma sistêmica falharem em impedir que adolescentes criem ou usem contas em redes sociais estão sujeitas a multa de 32 milhões de dólares americanos. Esse valor e a necessidade de evitá-lo se torna um grande incentivo para as empresas desenvolverem o aparato que use todos esses métodos de identificação e monitoramento para que se cumpra com os objetivos da eSafety.

É de se notar que esse aparelho tecnológico para monitoramento de crianças e adolescentes através do rastreamento de localização, biometria de rosto e voz, estilo de escrita, geolocalização de aparelho, conta e fotos terá serventia para monitorar adultos se assim for desejo das autoridades ou das empresas que o desenvolverem.

Historicamente, os obstáculos impostos pelas autoridades no acesso de conteúdos pela Internet não geram uma redução nos acessos e sim um desvio deles para métodos alternativos, como prometeu Nancy. É o caso frequente do IPTV pirata no Brasil ou do PornHub no Reino Unido. É pouco crível que 75% dos britânicos que eram visitantes do site tenham simplesmente desistido de acessar conteúdo adulto por conta da exigência de apresentação de documentos.

O esperado é que tenham buscado fontes desse conteúdo em locais mais escondidos, sem associação a empresas estabelecidas como a PornHub e de menor alcance das autoridades. Um novo local mais próspero até para conteúdo criminoso. O Online Safety Amendment gerará demanda similar: a busca de adolescentes por meios de comunicação criptografados que não são redes sociais, longe da vigilância das empresas, dos pais e do estado, expondo-os a novos riscos que não existiam antes.

Nesse tabuleiro rumo à criptografia, as autoridades já estão algumas casas na frente. Índia, Japão, EUA, Reino Unido, Nova Zelândia, Canadá e a própria Austrália assinaram em 2020 uma carta solicitando à indústria a implantação de backdoors - uma porta secreta - em sistemas de criptografia ponta a ponta para permitir que autoridades tenham acesso às mensagens e dados de cidadãos.

Para a retomada e avanço dessa pauta dos backdoors, seria muito conveniente que adolescentes fossem flagrados burlando o banimento para a evocação do argumento do “think of the children” mais uma vez. Assim como a revolta no Nepal merece nossa atenção, a Austrália vive hoje parte do que viveremos com a entrada em vigor no início de 2026 da Lei Felca que é ainda mais severa que a lei australiana. Observemos com atenção o que acontece com a Internet de lá para nos anteciparmos ao que acontecerá por aqui.