Narcisos digitais

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Imagem de: Narcisos digitais

Giovanna Chaves é aquela mulher padrão: jovem, loira, alta, com cabelos longos e perfeitamente ondulados, magérrima e de olhos azuis. Só que, mesmo sendo referência estética para muitas, ela não estava satisfeita.

Em outubro deste ano, a influenciadora anunciou que iria fazer uma lipoaspiração HD, ou lad, um procedimento relativamente novo – cerca de 3 anos – que cria uma espécie de escultura na gordura, certo relevo, para forjar definição muscular. É a barriga tanquinho fake, digamos assim.

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O tipo de postagem indica que a cirurgia foi feita por meio de permuta, uma modalidade bastante comum no mundo dos influenciadores – com a troca de um serviço ou produto por divulgação da marca ou, neste caso, do médico. Os cirurgiões plásticos operam as blogueiras e elas espalham seus nomes pela rede. É o famoso ganha-ganha.

"A troca de cirurgia por publicidade é uma forma de driblar a proibição do Conselho Federal de Medicina. O cirurgião não pode postar fotos de pré e pós, mas a blogueira faz isso por ele", explicou a cirurgiã plástica Queilan Chagas Araujo (CRM-SP 99316) em um papo com o The BRIEF.

Por lei, os médicos não podem usar a mídia para vender serviços ou procedimentos. O trabalho nas redes sociais deve ser puramente informativo. "Eu posso falar sobre certa cirurgia e explicar como é feita ou quais são os riscos e os benefícios, mas não posso dizer quanto custa, por exemplo", esclarece a doutora. "Na minha opinião, essa forma de divulgação não é legal, pois pode promover ou levar para o fundo do poço, caso ocorram complicações. Já vi casos assim acontecerem", completou.

Pode isso, Arnaldo?

Agora vocês devem estar se perguntando: pode uma mulher de 18 anos e magra fazer uma lipo? A resposta é: sim! Segundo a cirurgiã, a lipo é a remoção de gordura localizada em pacientes eutróficas, ou seja, dentro do peso considerado normal. O procedimento não é voltado para tratamento de obesidade ou emagrecimento. Ainda assim, a indicação é bastante relativa — e o ponto central da ética médica.

"Os critérios para a realização de uma lipo são gordura localizada, aumento de gordura em uma região corporal, em paciente magra. Mas é bem subjetiva a indicação [desse e de outros procedimentos] tanto por parte do paciente quanto do médico. É um acordo entre as duas partes. A questão aqui é que o padrão estético corporal cada vez mais exigente da sociedade faz com que as pessoas busquem uma perfeição inatingível", disse.

Vale lembrar que o Brasil está no top 5 de países que mais realizam cirurgias plásticas, de acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS).

Bingo!

A fala da doutora cutuca a ferida ou, no caso, a gordura da questão: por que essas mulheres dentro do padrão estético atual "entram na faca"? Para a criadora de conteúdo Dora Figueiredo, as mulheres são as grandes vítimas que caíram no conto de que só serão felizes se forem bonitas e magras.

"Acho importante não culparmos, mais uma vez, as mulheres. Elas estão vivendo a tal fantasia que o patriarcado inventou. Elas acreditam que só assim serão amadas", comentou.

As redes sociais colaboram (e muito) com a ilusão. Dora contou que mesmo ela, conhecida por incentivar o amor próprio e a saúde mental, já caiu nas armadilhas da opinião alheia. "Na internet só tem foto perfeita, editada, mas sempre vai ter alguém que vai diminuir seu corpo, criticar. Podem ter 1 mil comentários positivos e apenas 1 ruim, você se apega só àquele."

Espelho, espelho meu

Pois é, a web tem esse dom de causar dismorfia, um transtorno em que as pessoas veem defeitos onde não existe ou se incomodam demais com certas características pessoais. O escritor tcheco Franz Kafka, ao que tudo indica, sofria do mesmo problema. Não à toa, em sua obra mais famosa, A Metamorfose, ele se transforma em um inseto asqueroso e desprezível.

Só que, na época do livro, isso ainda não tinha nome. Hoje, o transtorno dismórfico corporal (TDC) é uma realidade que atinge cerca de 4,1 milhões só no Brasil, segundo documento considerado um guia da psiquiatria.

“Prevenir o TDC não é fácil porque se trata de uma condição com múltiplas causas: hereditárias, psicológicas e sociais. Tudo que afeta a autoestima de alguém, como trauma ou bullying, pode contribuir para o surgimento de percepções distorcidas de sua aparência física”, explicou o psiquiatra Marcel Higa Kaio, do Núcleo de Atenção aos Transtornos Alimentares da Universidade Federal de São Paulo, à Veja Saúde.

O novo normal

Na web, o TDC ganhou nova roupagem e foi chamado de “dismorfia do Snapchat", um dos fatores que têm levado as mulheres de menos de 20 anos aos cirurgiões plásticos. Dora contou que as influenciadoras mostram suas fotos com filtros aplicados e pedem para ficarem com aquela aparência para sempre. Elas se veem com tantos retoques que acreditam que só aquilo é bonito.

"Eu acho que sou nova, mas nunca é cedo demais para mudar algo que incomoda ou algo com que você não está feliz", justificou a influenciadora Giovanna sobre sua lipo.

A distorção não é só em relação à imagem, mas a vida em si. Quem pode se manter sã vivendo uma realidade de presentes, viagens e festas a todo instante? "As influenciadoras são iludidas; elas perderam a noção do que é dinheiro e beleza. Elas vivem uma fantasia em que todo mundo é rico, magro, bonito... Essa bolha deixa todas cegas em relação ao tamanho do problema que é aceitar certas coisas, tipo uma cirurgia plástica", falou Dora ao The BRIEF.

Fácil, só que não

O fato é que as permutas acontecem o tempo todo no mundo virtual. E talvez para essas moças o publi da lipo seja como o do sapato. O pagamento é fácil para o tamanho da recompensa. O problema, no entanto, é a repercussão, segundo Dora, afinal as cirurgias são caras e dão a ilusão de serem fáceis. Com isso, o público se sente incentivado a juntar o suado dinheirinho para comprar o sonho do corpo perfeito.

Joana Farias, mais conhecida como Jojoca, repercutiu o assunto em um vídeo e fez alertas quanto aos perigos do procedimento.

“As pessoas estão divulgando isso como se fosse uma drenagem linfática. Você já ouviu dizer que alguém morreu de drenagem linfática? Ou alguém que passou uma semana de cama, porque fez uma drenagem linfática?", disse. "Será que eu preciso fazer esse procedimento por permuta? Será que eu preciso divulgar isso para milhares de mulheres e meninas inseguras que vão achar que desse jeito elas vão ficar mais felizes, mais seguras? Vocês acham justo? Eu não acho", falou.

Dora foi além e nos disse que os médicos e as empresas de estética lucram com o ódio ao corpo das mulheres, por isso deveria ser proibido esse tipo de permuta. "O Conselho Federal de Medicina tem de intervir e penalizar. Aposto que muitas blogueiras nem sabem que é ilegal fazer propaganda médica", comentou.

Para a doutora Queilan, essa modalidade acaba tirando a objetividade do cirurgião, pois ele se sente tentado a fazer as operações para agradar ao paciente e ter aquela publicidade. "Vivemos novos tempos, e o CFM tem que acompanhar. É justo que os médicos divulguem seu trabalho, mas muitos não o fazem da maneira mais ética. Fato é que os médicos que usam as redes acabam tendo um crescimento exponencial na profissão", disse.

Realmente há inúmeros casos de profissionais da saúde se tornando verdadeiros influenciadores nas redes, com canais bombados no YouTube e muitos seguidores no Instagram. Mas a melhor receita até agora tem sido o velho e bom conteúdo de qualidade – informações técnicas e relevantes, sem consultas online ou venda de serviços como produtos.

Prescrição

Existem muitos caminhos para a "cura" da dismorfia e da busca incessante pela perfeição. Punição ou proibição dessa modalidade de permuta até pode surtir pequeno efeito, mas não vai cortar o mal pela raíz. A psicóloga Tatiana Mendes Rocha, por exemplo, acredita que é preciso disseminar ainda mais a busca pela aceitação e o cuidado com a saúde mental.

"Entender seu corpo, seu metabolismo e aceitar cada ruga ou defeito é uma dádiva. Ter uma relação íntima com seu corpo é essencial. É um processo de construção da subjetividade, um processo", disse. "Muitas mulheres estão assumindo suas medidas, seu corpo, suas marcas corporais, seu tipo de cabelo, suas ideologias… e são esses exemplos que devem encorajar e empoderar mais mulheres", finalizou.

Felizmente na cola das permutas surgem movimentos incríveis, como o Corpo Livre e o Body Positive, que incentiva a descoberta dos aspectos positivos do corpo. A abordagem joga luz no autoconhecimento, no autocuidado e na liberdade para escolher como se alimentar.

Dora dá boas dicas para quem se sente, muitas vezes, engolida pelas redes: "Viva uma vida real, pois ela não está no celular. Tenha conexões reais, e não virtuais, e quando estiver nas mídias sociais saiba que aquelas são versões editadas da vida de alguém. Ninguém compartilha tudo. Olhe para a internet como se você estivesse vendo uma série ou um filme".

Existe uma frase que resume bem esses novos movimentos e que veio do livro O Mito da Beleza, de Naomi Wolf: “não se destrói o patriarcado com fome”. É isso, Naomi, TMJ!

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