Exclusivo: embaixador na Coreia do Norte fala sobre ataques à Sony

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A Coreia do Norte figura nas manchetes nacionais apenas em casos de tensão. Ou deboche. Dificilmente nossos veículos de comunicação repassam notícias positivas sobre o país. Não apenas no Brasil, essa prática ocorre no Ocidente. Que a justiça também seja feita: com um regime fechado, é difícil entender o que se passa nas terras de Kim Jong-un. 

 O último mês de 2014, que não está muito longe, foi marcado por uma tensão envolvendo Coreia (RPDC), Estados Unidos da América e a companhia japonesa Sony. O resumo: a Sony sofreu ataques cibernéticos e perdeu cerca de 200 milhões de dólares; os EUA acusaram a Coreia pelo ataque, pois a empresa japonesa lançaria um filme que feria a imagem do líder coreano; a Coreia negou o ataque, sofreu sanções norte-americanas e contra-atacou (diplomaticamente) a Casa Branca.

 A questão sobre o assunto, sem desmerecer a grande perda da Sony, vai além destes milhões de dólares. Qual a razão da animosidade entre os dois países? Os norte-coreanos realmente odeiam os norte-americanos e o mundo? Nosso sentimento seria alimentado pelos barões da mídia ocidental e porque somos bombardeados apenas com notícias negativas sobre o país?

 O Brasil possui um comércio bilateral com a Coreia do Norte que chegou a quase R$ 400 milhões em 2009. Atualmente, o valor não chega a R$ 50 milhões. A queda nos negócios aconteceu por causa das sanções aplicadas à RPDC. Isso demonstra que apesar da distância física dos países envolvidos, essas tensões diplomáticas ao longo dos anos afetam todas as nações parceiras.

 Para entender algumas destas e de outras perguntas, o TecMundo conversou com Roberto Colin, o embaixador brasileiro em Pyongyang, na Coreia do Norte. Colin nos respondeu todas as perguntas sem qualquer medo de retaliação do governo e ainda comentou que existe uma possibilidade de o regime norte-coreano ser mais aberto ao mercado internacional.

 Vida e tecnologia na RPDC

TecMundo — Como é a relação entre Brasil e Coreia do Norte?

Roberto Colin – O Brasil abriu sua embaixada em Pyongyang em 2009 com o objetivo de contribuir para a solução pacífica da questão coreana, além de oferecer novas oportunidades de atuação política, econômica e comercial na região.

TM – Poderia dar algum exemplo?

RC – No âmbito de um acordo de cooperação técnica, treinamos alguns técnicos em agricultura norte-coreanos na Embrapa. Eles também estão interessados em cooperar conosco na área do futebol e gostariam de mandar para o Brasil jovens talentosos para cursos de capacitação. Já nas áreas educacional, científica e tecnológica, a Pyongyang University of Science and Technology (única universidade privada no país) ministra aulas em inglês, é mantida por instituições de vários países e deseja receber professores brasileiros, além de mandar estagiários ao Brasil.

TM – Como os norte-coreanos se relacionam com o mundo? O povo sabe o que está acontecendo, desde informações políticas, desastres, eventos esportivos etc.?

RC – Os norte-coreanos somente recebem informações devidamente selecionadas pelo regime. Destaco, a propósito, que a mídia local somente divulga informações positivas sobre o Brasil. É crescente o volume de notícias sobre o esporte internacional. O esporte é cada vez mais o principal canal de contato entre a Coreia do Norte e o mundo exterior.

TM – Como é a relação "vida x tecnologia" na Coreia do Norte? Os norte-coreanos têm acesso aos aparelhos, como smartphones, tablets, notebooks e computadores?

RC – O cidadão comum norte-coreano tem pouco acesso a aparelhos como tablets, notebooks ou computadores, mas a situação está mudando rapidamente. No caso de smartphones e celulares, há pelo menos 3 milhões de usuários (o país possui cerca de 24 milhões de habitantes). A RPDC produz seus próprios celulares, smartphones e tablets, mas muitos componentes são importados.

TM – E sobre a navegação na internet? O cidadão comum tem acesso?

RC – O cidadão comum não tem acesso à internet global. Há, no entanto, uma internet interna, a intranet, que não tem restrições. Em algumas universidades e centros de pesquisa há acesso limitado à internet, ou seja, apenas a sites científicos. Somente altas autoridades do Partido, Forças Armadas e Governo têm acesso mais amplo à internet global.

TM – Como funciona a rede de telefonia? É estatal, com apenas uma empresa?

RC – Todo o sistema de telefonia é estatal. Tanto no caso da telefonia fixa como no do celular, existem duas redes não interconectadas, uma para os norte-coreanos e outra para estrangeiros. Eu não posso, por exemplo, telefonar para os funcionários norte-coreanos da embaixada. A telefonia celular é administrada por uma joint venture norte-coreana/egípcia.

TM – E o estrangeiro? Como vive nesse meio e o que sente?

RC – No meu caso e no dos demais estrangeiros que vivem na Coreia do Norte, o acesso a internet, telefonia e televisão por satélite não tem nenhuma restrição.

TM – Existe uma restrição de liberdade "ferrenha" na Coreia do Norte ou não, o que lemos no Ocidente seria preconceito sobre o governo coreano?

RC – As duas afirmações são verdadeiras. A Coreia do Norte é – por circunstâncias históricas – uma nação muito restritiva e isolada. Ao mesmo tempo, há também muito preconceito e exagero nas informações sobre o país, resultado do isolamento e da opacidade do regime.

Tensão EUA e Hackers: “A Coreia não deve ser subestimada”

TM – Nas últimas semanas, se fala muito sobre os ataques hacker sofridos pela empresa japonesa Sony. A Casa Branca, nos EUA, afirmou que estes ataques teriam vindo da Coreia do Norte. A China alegou que não há provas. Como a Coreia do Norte se posiciona quanto a isso? É possível que o ataque tenha realmente saído do país — ou tenha sido financiado por ele?

RC – A Coreia do Norte nega qualquer participação nesse episódio, mas afirma que o “castigo” foi merecido pelo fato de o filme “ofender a honra da liderança suprema do país”. Seja como for, o desenvolvimento da Coreia do Norte na área cibernética, assim como na nuclear e militar, não pode ser subestimado.

TM – Segundo os noticiários, agora existe uma tensão diplomática maior entre EUA e Coreia do Norte. Ela é real? O povo norte-coreano também sente essa tensão ou ela se limita ao governo?

RC – A tensão é real, até porque, tecnicamente, a Guerra da Coreia nunca terminou, e a “paz provisória” se baseia em um armistício assinado em 1953. A Coreia do Norte tem insistido há anos na assinatura de um acordo de paz definitivo com os Estados Unidos, mas os norte-americanos condicionam qualquer negociação ao fim do programa nuclear norte-coreano, o que a RPDC considera inaceitável.

No entanto, o sentimento negativo em relação aos Estados Unidos é principalmente institucional, e não em relação ao povo norte-americano. A prova disso é o fluxo constante de turistas norte-americanos à Coreia do Norte.

TM – O povo norte-coreano sabe o que está acontecendo sobre este assunto?

RC – Os norte-coreanos sabem pouco sobre o assunto, sobre o filme, que é extremamente sensível por debochar da figura do líder supremo.

TM – Foi noticiado que a internet foi cortada na Coreia do Norte por cerca de 9 horas. Essa informação é verídica? O governo ou o povo acredita que foi uma retaliação norte-americana devido aos recentes assuntos?

RC – A informação é verdadeira. Os norte-coreanos acreditam que se trata de uma retaliação norte-americana.

TM – Como a imprensa norte-coreana está noticiando este assunto?

RC – A televisão e os jornais pouco falam sobre isso. Somente a agência noticiosa KCNA, destinada a leitores estrangeiros, tem se referido ao assunto.

TM – Por fim, você acredita que tensões como essa possam culminar em ataques mais enérgicos de ambos os lados?

RC – Não acredito. Ninguém sairia ganhando com isso.

Paz na Coreia e mundo

Durante a entrevista, o embaixador Roberto Colin tocou em um assunto não muito observado pela mídia ocidental. Segundo Colin, existem estratégias alternativas e mais eficazes que podem promover mudanças na Coreia do Norte e na sua integração à comunidade internacional.

O problema no momento é a “concentração exclusiva em aspectos político-militares” que acabou por excluir essas alternativas. “Focando apenas o regime, fica esvaziada a possibilidade de uma discussão mais ampla sobre as consequências sociais, econômicas e políticas do crescimento da economia de mercado na RPDC como fenômeno transformador”, comentou Colin.

Ao que parece, segundo as palavras do embaixador, a Coreia do Norte sofre com o preconceito e as sanções de outras nações, e isso acarreta um isolamento ainda maior do país.

“A comunidade internacional deveria estimular uma transição gradual e de longo prazo, encorajando forças dentro da Coreia do Norte e o próprio regime a promoverem mudanças que estimulem um processo de abertura econômica que, por sua vez, conduza ao caminho da moderação política e das reformas”, disse Colin, que ainda deu voto de esperança de que é possível mudar essa relação: “Em suma, pela via do engajamento e da integração à comunidade internacional, a Coreia do Norte poderá alterar suas prioridades políticas e suas atitudes”.

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