Coluna TCG: O mito do livre arbítrio nos games

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A garota está em um trem, dormindo, enquanto o enorme veículo se movimenta sobre os trilhos. A paisagem noturna passa rápida sobre a janela, dando o descanso merecido à menina. Porém, alguns vagões à sua frente, um grupo de policiais se aproxima para prendê-la. O espírito que a acompanha, no entanto, sabe disso, e cabe a você, jogador, decidir se ele deve acordá-la para uma possível fuga ou deixar que as coisas aconteçam sem a sua interferência. Porém, não precisa queimar seus neurônios para saber o que fazer, já que o resultado de tudo isso será o mesmo, independente do que você faça.

A cena acima é uma prévia do que encontraremos em Beyond: Two Souls, o aguardado game da Quantic Dream para o PlayStation 3. O trecho foi descrito pela revista Game Informer, mostrando como funcionará o sistema de escolhas com o qual iremos nos deparar no ano que vem. Porém, em vez de me deixar empolgado com a mecânica, a descrição das ações e respostas só me mostrou o quanto os video games atuais tentam nos oferecer uma sensação de liberdade que simplesmente não existe.

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É claro que o exemplo de Beyond ainda é um pouco precipitado, uma vez que o jogo ainda nem foi lançado e é muito imprudente tirar conclusões a partir de um pequeno trecho. Porém, o que a revista me trouxe serviu não apenas para rever minha expectativa quanto ao título, mas também para me fazer reavaliar todas as escolhas que tomei em outros jogos. Afinal, eu realmente decidi o destino daqueles personagens ou apenas me iludiram quanto a isso?

Um destino, muitos caminhosIndependente da escolha, uma única resposta

Imagine a seguinte situação: você está em sua casa e precisa ir ao mercado que fica a algumas quadras de distância. Qual caminho seguir? É possível ir pela avenida principal, cuja rota é a mais lógica e segura; há aquele atalho, que diminui o percurso pela metade, mas passa por uma vizinhança nada amistosa; e há aquela rota mais extensa que vai levar o dobro do tempo para ser concluída. Qual escolher? Qualquer uma, já que todas elas levarão ao local aonde você que ir.

É exatamente isso que a grande maioria dos jogos oferece. Seja em termos de rotas, como o exemplo acima, ou em questões morais ou relacionadas ao que fazer com um ou outro personagem, tudo o que você fizer vai conduzir a um único ponto, eterno e imutável. Isso significa que, independente do que você escolher, o resultado final ainda será o mesmo.

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É o que acontece com The Walking Dead: A New Day. Isso fica bem claro em determinado ponto da trama, em que Lee, o protagonista, se depara diante da difícil decisão: salvar um menino de ser atacado por zumbis ou ajudar um rapaz do outro lado? Na verdade, pouco importa, uma vez que a criança vai sobreviver e o homem será mordido, por mais que você tente ajudá-lo.

Diante disso, fica a pergunta: é realmente preciso induzir o jogador a acreditar que ele tem algum tipo de poder, uma vez que a trama é conduzida de maneira tão fechada quanto qualquer outro game disponível no mercado? Isso não é como enganar o consumidor?

Para não dizer que o exemplo da Telltale é totalmente engessado, ele ameniza essa característica com outros elementos. Ainda que o enredo seja pré-estabelecido e sem a possibilidade de mudança, suas escolhas influenciam diretamente a forma como os demais personagens vão encará-lo, criando algumas variações nos diálogos futuros.

Maniqueísmo simplista

Outro jogo que oferece uma sensação equivocada de controle é inFamous. Desde o lançamento do primeiro game, a promessa era que poderíamos escolher ser um cara boa pinta ou aquele que usa seus poderes para o mal. No entanto, o que realmente muda em cada um dos casos?

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Seja ajudando as pessoas ou tocando o terror, a única diferença em todo o game está nas habilidades desbloqueadas ao longo do caminho. Sua sequência até tenta oferecer uma variedade maior, com missões exclusivas para cada tipo de tendência, mas nada que realmente altere o desenvolvimento da história. No final das contas, a única coisa que realmente é alterada é a forma como os cidadãos — inúteis, diga-se de passagem — vão enxergar Cole. É claro que, ao contrário dos exemplos anteriores, o desfecho possui suas variações, mas a história segue seu mesmo caminho.

Isso sem falar da possibilidade de um cara bom virar mau de uma hora para a outra — e vice-versa — sem que isso influencie na narrativa.

O problema da predestinação

Você pode até não acreditar em destino, mas ele certamente existe — pelo menos em alguns jogos que conseguem maquiar esse único desfecho com diferenças na forma com que a trama é conduzida. Assim, você tem a liberdade de conduzir os personagens por diferentes caminhos que se encontram um ponto em comum mais para frente.

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Voltemos ao exemplo do mercado. Digamos que, dependendo do caminho percorrido, algo de diferente aconteceu. Que você tenha sido assaltado ao optar pela rota mais curta ou se machucou ao cair de bicicleta ao ir pelo maior trajeto. Você ainda chegaria ao lugar desejado, mas com experiências distintas.

Guardadas as devidas proporções, é o que aconteceu com Mass Effect. Ainda que o final seja o mesmo em todos os casos, a forma com que você chega nele varia de acordo com o que você fez.

Isso é bom? De certo modo, sim, principalmente se a produtora consegue fazer com que cada “passeio” seja tão interessante quanto o “destino”. Assim, por mais que você se depare com a mesma conclusão, aquilo pelo que você passou acaba valendo a pena. “A viagem é mais importante do que o ponto de chegada”, não é mesmo?

Por outro lado, isso acaba caindo no problema que a BioWare teve de enfrentar no início do ano. Ainda que o jogador tenha feito dezenas de escolhas ao longo da série, como evitar a frustração ao perceber que, tudo aquilo, não serviu para nada? Trata-se de um grande risco bem comum nesse formato de “predestinação”.

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Com isso, novamente caímos na discussão sobre a validade do formato. Já que é para chegarmos a um final em comum, não é mais fácil apresentar uma trama fixa desde o início para evitar que o jogador sinta-se enganado, como aconteceu com Mass Effect 3? Se for para seguir por esse caminho, que as consequências, ao menos, façam tudo valer a pena.

Pouca diferença

De maneira totalmente oposta, Heavy Rain é o tipo de jogo que se apega às pequenas decisões para criar diferentes finais, mas sem alterar o caminho até lá. Isso faz com que, independente do que você faça, pouca coisa mude na história e as consequências só aconteçam no final.

Isso não chega a ser algo ruim, já que realmente temos as mudanças significativas no desfecho da trama. Porém, o que incomoda é exatamente aquilo que apontei como um possível problema para Beyond: a repetição. Para quem tentar conseguir todas as conclusões, a história pela qual ele terá de passar será basicamente a mesma, com uma ou outra alteração discreta.

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No caso do jogo da Quantic Dream, tanto faz você cortar o dedo de Ethan durante o Desafio do Lagarto ou beber o veneno no Desafio do Rato. Tudo é conduzido da mesma maneira, independente de suas decisões.

Na minha luta pela Platina, por exemplo, foi simplesmente insuportável rever os mesmos acontecimentos se repetirem por seis ou sete vezes, com pouca ou nenhuma alteração.

Há solução?Por um mundo com destinos diferentes
Beyond: Two Souls ainda não tem data de lançamento, mas já temo por ele. É difícil dizer o que ele nos reserva, mas, levando em consideração o histórico da indústria e da própria Quantic Dream, é possível que ele siga a mesma estrutura de outros jogos. Minha aposta é que ele repita a fórmula usada em Heavy Rain, uma vez que minhas impressões iniciais sobre o jogo me fizeram lembrar a saga do Origami Killer.

No entanto, não é nada disso que eu gostaria de ver. Ficaria muito feliz em ser surpreendido ao perceber que minhas escolhas realmente fariam diferença não apenas no final, mas em toda a trama e de maneira significativa. Afinal, não se trata apenas de escolher o caminho pelo qual irei ao mercado, mas o destino que darei a todos os personagens ali envolvidos.

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