Video games: há meio século nos ensinando a fracassar

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Eu tinha um costume horrendo — verdadeiramente execrável — lá pelos idos de 1990 e alguma coisa. Eu mordia o meu controle de Mega Drive. Pois é, cravava os dentes, mesmo. Mais de 10 “continues” gastos com o M. Bison em Street Fighter II: Champion Edition no modo very hard? Mordida. Morria afogado em Sonic The Hedgehog faltando apenas poucos centímetros para encontrar uma resplandecente bolha de ar? Lá iam os dentes novamente.

É claro que eu inventava histórias à época: “Esses furos aí? Ah, sim, é que eu fabriquei a minha própria superfície antiderrapante. Engenhoso, não?”. Ou: “Pois é, meu controle foi prensado pelo armário. Uma desgraça, mas ele ainda funciona!”. Mas, ganhados alguns (muitos) anos, eu me sinto confortável para admitir. E não apenas isso: também me ocorreu de questionar aquele belo ato de insanidade juvenil.

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Talvez Freud dissesse que houve um “deslocamento” ali. Minha mandíbula ia de encontro ao pobre e surrado controle porque, infelizmente, eu não poderia socar M. Bison sem intermediários ou afogar a ameba do Sonic por não ter se esticado um pouco, a fim de sugar o precioso oxigênio.

Algum “expert” em educação talvez dissesse Street Fighter me deixava mais violento — mas isso excluiria o universo mimoso do Sonic, que não tinha lá muita coisa que incitasse quadros de violência. Mas o que me interessa aqui não é isso.

Talvez a pergunta mais relevante fosse: porque diabos eu voltava para aquele entretenimento que me causava tanto stress — e ainda desgastava as pontas dos dentes? (Na verdade, era a pergunta que a minha mãe me fazia sempre que eu começava xingar estupidamente o meu velho Mega).

Admita: fracassar é bom

Há algumas teorias sobre isso, é claro. Trata-se quase de uma verdade que a maioria dos jogadores ainda se nega a encarar — e que a última edição do Tô Véio me ajudou a relembrar. Dizemos geralmente que “gostamos do desafio”... Mas isso ainda me parece um eufemismo.

A verdade? Nós gostamos é de fracassar miseravelmente, seja diante de um chefe estrambólico, de uma fase praticamente intransponível ou de um timer que insiste em se esgotar antes que você termine o maldito desafio.

Mas, é claro, ninguém gosta apenas de perder. Queremos ver nossos esforços recompensados. Todo aquele treinamento, todas aquelas preciosas horas — tão mais preciosas quanto mais velho se fica — precisam, em algum momento, ser transformadas em um sucesso que faz encher o peito, a fim de contar a proeza aos amigos menos esforçados. Há quem dê um nome pra isso, na verdade.

Um “paradoxo do fracasso”

Permitam-me mais uma lembrança, dessa vez recente — e sem mastigações de quaisquer peças de video game. Embora Demon’s Souls seja um título relativamente velho, confesso que foi apenas neste ano que resolvi, enfim, adquirir uma cópia para ver o que, de fato, havia de tão especial em Boletaria.

Em apenas algumas horas, me ocorreu que havia diante de mim um dos melhores (senão o melhor) jogo da atual geração de consoles. Eu poderia falar aqui da estética única, daquela aura de “morte e pestilência” que parece refletir muito mais a Idade Média do que outros capa e espada mais “limpinhos” e tal. Mas é preciso admitir: o desafio quase sobre-humano de alguns trechos era o que realmente me interessava.

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“Eu odeio falhar em jogos, mas odeio ainda mais não falhar”, escreveu Jesper Juul em seu livro “A arte de falhar” (sem tradução para o português). “Há inúmeras formas de explicar essa contradição (...). Mas vamos, primeiro, considerar a estranheza da situação: todo dia, centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo jogam video games, e a maioria delas vai experimentar uma falha em algum momento.”

Ele continua: “Parece seguro afirmar que os seres humanos têm um desejo fundamental pelo sucesso e pelo sentimento de competência, mas os jogadores escolheram uma atividade na qual certamente vão falhar e se sentir incompetentes, pelo menos em parte do tempo”.

“Na verdade”, ele conclui, “eles preferem jogos em que vão falhar”. Eis o ponto, portanto. Eis o porque de jogos como Demon’s Souls conseguirem aquela respeitabilidade toda. Eles vão desafiá-lo e, ao final, quando você finalmente obtiver sucesso, saberá não apenas que foi merecido, mas que você provavelmente melhorou suas habilidades de jogador durante o processo.

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O fenômeno Heavy Rain

Mas, ie! Isso não é uma questão excludente em um jogo, certo? Vale lembrar de outro joguinho que também deu o que falar: Heavy Rain. Desde que a Quantic Dream anunciou o seu ambicioso projeto — com aqueles belos teasers e tal —, algo já havia sido deixado claro: “Jogue o título até o final, apenas uma vez”.

Em outras palavras, um dos elementos daquele “duo” do desafio não se encontra ali. Quem jogou deve se lembrar que qualquer ação ali tem consequências que não podem ser revertidas com checkpoints, “continues” ou qualquer coisa do gênero. De fato, isso pode incluir até mesmo a morte de um dos personagens centrais.

em, antes de mais nada, eu gostaria de dizer que Heavy Rain é, sem sombra de dúvida, um dos meus jogos favoritos. Mas, mesmo assim, isso não evitou que eu sentisse certo desamparo ao encarar o título. Ao se aproximar de um esquema de consequências muito semelhante ao da própria vida (guardadas as devidas proporções), Heavy Rain trocava um dos baluartes da diversão em games por aquele senso de “urgência” que lhe é tão característico.

“Não me frustre, senão eu choro!”

Mas, é claro, há um terceiro grupo de jogos que parece escapar alegremente da trindade do “desafio-fracasso-superação”. Depois de acompanhar por vários anos a atual indústria de games, percebi que as coisas tem se tornado mais suavas. Sem papas na língua: algumas desenvolvedoras parecem mesmo produzir jogos para “frouxos”.

Ok, não que exista mesmo um problema em encarar um jogo estilo “passeio no parque” apenas para deslizar por uma aventura interativa. Mas, se você quer realmente um jogo, algo que traga aquele senso de superação tão característica... Então boa parte desses títulos com apelo “globalizado” vai fazê-lo torcer o nariz.

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E, é claro, eles dificilmente vão fazê-lo morder o controle.

(A propósito, para não passar vergonha sozinho, menciono aqui o costume de um amigo meu: ele girava o controle pelo ar várias vezes para, por fim, espatifar o desgastado periférico contra o chão. Um gesto muito elegante, sem dúvida.)

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Fontes

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