Rota 66 é a série que todos os brasileiros precisam ver (crítica)

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Imagem: Globoplay

Entre os anos 70 e 80, uma unidade da rota especial da Polícia Militar de São Paulo praticou uma série de assassinatos a jovens (na maior parte, negros e pobres) que eram posteriormente forjados para parecer que se tratavam de tiroteios – ou seja, como se as vítimas tivessem reagido, e não houvesse ocorrido ali execuções policiais. Nesta mesma época, um jovem repórter gaúcho resolveu investigar estes casos.

Depois de sete anos de apuração, Caco Barcellos (hoje um dos mais célebres e premiados jornalistas do Brasil) concluiu que os policiais que participavam da Rota 66 executaram cerca de 4.200 pessoas, concretizando um verdadeiro genocídio da população pobre.

Os casos só começaram a chamar alguma atenção na imprensa quando o grupo matou três jovens de classe alta. Antes disso, as mortes eram louvadas por jornais como Notícias Populares e por radialistas que construíram uma carreira louvando a “limpeza” feita pela polícia.

Toda esta investigação jornalística foi reunida e deu origem ao livro Rota 66, lançado por Caco Barcellos em 1992, e premiado com o Jabuti em 1993. Trinta anos depois, toda esta história está sendo recontada na minissérie Rota 66: A Polícia que Mata, disponível no Globoplay, que resgata o trágico caso desta polícia letal para as gerações que não acompanharam o caso.

Rota 66: uma reconstituição focada nas vítimas e no trabalho jornalístico

Rota 66: A Polícia que Mata é uma série forte e urgente. A história ali contada – que não tem o compromisso de ser uma reconstituição totalmente fiel ao livro-reportagem de Caco Barcellos – busca trazer os assassinatos pela ótica que foi menos priorizada pelo jornalismo na época, que costumava simplesmente relatar as mortes e “comprar” a ideia de que havia ali uma polícia ultra eficiente em combater o crime.

Na série, Barcellos é vivido pelo ator Humberto Carrão, que consegue expor de forma digna as tensões que circundavam o reservado repórter (há até uma surpresa em saber tantos detalhes sobre sua vida na série). A proposta da Rota 66, portanto, é a de humanizar os casos dos sujeitos executados pela polícia pelo olhar dos familiares das milhares de vítimas.

Há, por exemplo, o caso de Anabela (Naruna Costa), uma dona de casa grávida cujo marido Divino (Felipe Odádélè) morre quando voltava do trabalho, carregando um guarda-chuva, e que depois é enquadrado por radialistas como um bandido. Há o de Lunga (Ariclenes Barroso), que sobrevive à execução por um milagre e se torna um alvo vivo dos policiais militares. Há ainda Homero (Ailton Graça), um sargento responsável por treinar policiais e que vê a sua crença na instituição ir a chão depois que a Rota 66 assassina seu filho, recém formado no curso de Direito.

Mas além do caso dos assassinatos, Rota 66 também faz um serviço à população ao enfocar nas entranhas do trabalho prestado à população pelos jornalistas – mas não por todos eles. Ao mostrar o trabalho duro e sacrificado de Caco Barcellos por sete anos (o que envolvia a sua ausência constante da vida familiar e o prejuízo às suas relações, as ameaças de morte veladas e explícitas, as intimidações, etc.), há um valor quase pedagógico ao revelar à população que o jornalismo, quando cumpre sua função, tem o papel de trazer a público aquilo que nunca saberíamos se não contássemos com os esforços destes profissionais.

E há outra mensagem aqui: o “jornalismo” (aqui com aspas) é uma ferramenta que pode também ser usada para prejudicar o país. Isto se escancara na cobertura que era feita pelos jornais que louvavam as execuções da Rota 66 (fica bem claro que se trata do Notícias Populares, jornal lendário que circulou em São Paulo entre 1963 e 2001) ou pelos radialistas que construíram suas carreiras ao surfar na ideia de que “bandido bom é bandido morto”, premissa que segue causando estragos enormes até hoje.

Por que é urgente assistir Rota 66: A Polícia que Mata?

(Fonte: Globoplay)(Fonte: Globoplay)Fonte:  Globoplay 

Narrada em 8 capítulos, Rota 66 surge em um momento histórico em que as confusões entre verdade e mentira nunca tiveram tão bem engendradas. Há muita gente propensa a acreditar, hoje, que uma polícia matadora pode ser necessária para a melhoria do país.

Por isso, é mais do que necessário que, mais uma vez, uma história bem contada escancare o óbvio: de que não há pena de morte no Brasil. E, mesmo que tivesse, ela não seria efetivada por uma polícia, que jamais acumularia os papéis de proteção do cidadão e de julgamento penal. Ou seja: quando isto acontece (e podemos ter certeza que isso segue ocorrendo em alguns lugares), estamos diante de uma polícia corrupta, ou, na pior das hipóteses, de profissionais psicopatas.

De forma cirúrgica, Rota 66 organiza sua narrativa construindo um caminho que leva desde os assassinatos da rota até o momento atual. Vemos como o tom de demonização da imprensa (na série, Caco Barcellos aparecendo sendo xingado por populares, como se ele tivesse, com suas reportagens, desmontado uma polícia protetora) vai escalando até os dias de hoje, em uma óbvia articulação desenvolvida por certos grupos políticos.

Não por acaso, a série vai caminhar até o massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 detentos foram mortos no interior do presídio paulista. Parece que Rota 66 busca esclarecer, em suas entrelinhas: a ideia da desumanização dos sujeitos, não importa quem sejam eles, é um verdadeiro tiro no pé, uma arma que se volta contra os próprios atiradores o tempo inteiro.

E mais do que isso: há uma boa camada da sociedade (envolvendo políticos, partes da polícia, jornalistas) que se beneficia diretamente deste discurso – que vitimiza principalmente a população pobre e negra do país. Não por acaso, a história só se tornou um escândalo quando a rota matou filhos de ricos. Mas, até aí, milhares de pessoas já haviam sido assassinadas, sem qualquer indignação da opinião pública.

Com muita coragem para mexer neste vespeiro, Rota 66: A Polícia que Mata é um acerto do Globoplay que chega em um momento muito oportuno. Seria muito desejável que a série fosse parar na TV aberta, para que a mensagem que ela carrega pudesse atingir muito mais pessoas.

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