True crime: por que gostamos tanto de séries de crimes reais? (análise)

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Imagem: Globoplay

Cena da série Dahmer: Um Canibal Americano, da Netflix. Vemos um homem branco e loiro, de ar meio ensimesmado e aéreo, como se estivesse dopado. Ele se direciona até um bar gay, onde começa a trocar ideias com três homens negros. Diz a eles que é fotógrafo, e acaba convencendo um deles a ir para sua casa para posar para algumas fotos.

Chegando lá, o sujeito acha tudo meio estranho. Logo sente que entrou numa roubada. O homem que o convidou mora em um muquifo, um prédio em péssimo estado, conhecido por ser um lugar que reúne usuários de crack. Ao adentrar o apartamento, o cheiro é de carne podre. A fotografia da cena, em tons saturados e quentes, sugere um ambiente quente e perturbador. Nada ali sugere prazer e conforto, apenas incômodo.

Mas talvez a grande chave para quem assiste essa série é essa: nós sabemos de antemão que tudo o que é mostrado em Dahmer se baseia no que de fato aconteceu. Trata-se da famosa história de Jeffrey Dahmer, um serial killer americano, nascido no estado de Wisconsin, que assassinou 17 homens. Mas não foi só isso: além de matar, ele dissecou seus corpos e comeu partes deles.

Toda esta descrição inicial da cena é colocada na abertura deste texto para provocar uma discussão. Sem sombra de dúvida, há hoje uma onda do que chamamos de narrativas de true crime, que envolvem a reconstituição de histórias de crimes que realmente aconteceram.

Se há uma febre – e se as produtoras e plataformas de streaming estão interessadas em investir dinheiro neste gênero – é porque tem muita gente querendo assistir. Mas o que será que nos atrai a este tipo de história?

A onda de narrativas true crime em séries

(Fonte: Netflix)(Fonte: Netflix)Fonte:  Netflix 

Vejamos o cardápio das séries disponibilizadas nos últimos anos. Tivemos, dentre outros produtos, Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime e as temporadas de American Crime Story, na Netflix; Caso Evandro e Rota 66, no Globoplay; Pacto Mortal, no HBO Max; The Act, no Star+.

Obviamente, esta é apenas uma pequena parcela das opções de séries true crime que temos hoje para consumir nas plataformas de streaming. A obsessão por este tipo de história é tão impressionante que pode suscitar uma questão relevante: o que há por trás deste tipo de febre? E por que, para certas pessoas, parece ser muito fascinante saber que os casos criminais contados ali realmente aconteceram?

O que se observa, em algum aspecto, é o que eu chamaria de uma espécie de “fetiche da realidade”: por sabermos que um fato é real, ele parece-nos mais atraente que uma história abertamente ficcional. Ou seja, temos uma certa pulsão que nos leva a preferir sempre o que tem alguma conexão com a realidade (ou, ao menos, a ideia daquilo que talvez seja o real). Não por acaso, quando um filme recebe no início aquela frase do “baseado em fatos reais”, tendemos a ficar mais interessados por ele.

Há muitos especialistas se debruçando sobre esta dúvida: as possíveis razões que explicariam nossa paixão pelo true crime. Dentre os argumentos, estão as ideias de que nos sentiríamos mais protegidos (pois, ao conhecer a cara do mal, saberíamos como nos defender dele), ou que estas histórias nos trazem um certo alívio por não sermos nós as vítimas (nem os perpetradores) da violência.

Mas é claro que há quem levante a hipótese de que haja um prazer mórbido em assistir à encenação dos crimes, como se houvesse algo próximo da pornografia em ver essas cenas violentas. Daria para a gente se perguntar sobre qual é a razão pela qual nos parece razoável querer ver a geladeira cheia de corpos de Jeffrey Dahmer, ou ver as imagens, ainda hoje muito explícitas, de Daniella Perez morta no meio do mato, com os olhos entreabertos, violando qualquer resquício de dignidade que pudesse restar a uma vítima de um assassinato brutal.

A partir deste raciocínio, talvez dê para pensar que, em certa medida, nos regozijamos em saber que o mal existe (vale lembrar que os casos true crime costumam se centralizar em crimes “especiais”, com características chocantes, muitas vezes causados por serial killers), mas que ele não está do nosso lado, e, sim, do lado do outro.

As séries true crime podem ser socialmente relevantes?

(Fonte: Globoplay)(Fonte: Globoplay)Fonte:  Globoplay 

Com esta discussão, não quero sugerir que não haja algum interesse público em falar sobre crimes clássicos. A grande questão aqui, ao que me parece, é a forma. Há uma diferença entre tratar um crime conhecido a partir de seus diversos aspectos, que podem impactar na vida das pessoas, e apenas querer consumir histórias de assassinato para se impressionar com o que se vê.

Há vários exemplos que ajudam a sustentar esta ideia. Penso, por exemplo, na investigação jornalística trazida pela série Caso Evandro, que parte do trabalho do podcast Projeto Humanos, realizado por Ivan Mizanzuk, e que conseguiu atualizar uma história criminal que fala de muitas coisas além dela mesmo: por exemplos, dos problemas do trabalho da polícia e na abordagem completamente pejorativa às religiões afro-brasileiras dada ao jornalismo, culminando numa condenação injusta de pessoas inocentes.

Já em Rota 66, leva-se para as telas a investigação realizada pelo jornalista Caco Barcellos e publicada em forma de livro em 1992, e que revelou um escândalo envolvendo a tropa especial da Polícia Militar de São Paulo que executou 4.200 pessoas antes de ser finalmente condenada.

A história de um ramo da polícia formado por psicopatas, de gente que mata apenas por prazer e para satisfazer um desejo torto de “justiçamento”, tem mais proximidade com os dias de hoje do que pode parecer à primeira vista. Por isto, resgatar esta memória é mais do que necessário: é imprescindível.

Estes são casos que, diferente de uma mera especulação bisbilhoteira (como talvez entre a série de Elize Matsunaga, por exemplo), conseguem de fato trazer informações e fazer uma recapitulação da história do Brasil, prestando um serviço à população e saindo do mero fetiche pelo crime.

Penso então que a discussão sobre true crime deve servir não necessariamente para se discutir se faz sentido gostar de histórias sobre crimes reais, mas, sim, para refletir para que estas histórias servem.

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