Semana com 4 dias de trabalho é o futuro?

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Nas últimas décadas, o mundo do trabalho passou por várias revoluções que mudaram a maneira como as pessoas encaram a forma de "ganhar o pão de cada dia". Recentemente, após a massificação do home office por causa da pandemia de covid-19, outro modelo que tem ganhado cada vez mais adeptos é o sistema 4x3. Nele, em vez de se dedicarem aos tradicionais 5 dias de trabalho por semana, colaboradores trabalham em 4 e folgam nos outros 3.

O esquema normalmente troca a jornada de 40 horas por semana (que, divididas pelos 5 dias, resultam em 8 horas diárias de trabalho) por 32 horas semanais (4 dias de 8 horas de trabalho em cada um). Também é comum que empresas que adotam o sistema deixem a sexta-feira como o terceiro dia de folga, sendo possível emendá-la com o sábado e o domingo.

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Apesar da diminuição da jornada de trabalho, o funcionário que está no modelo não pode ter o salário reduzido (a chamada irredutibilidade salarial). A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) só permite o corte em casos de acordos coletivos (quando um empreendimento está à beira da falência e precisa diminuir salários para não demitir, por exemplo).

A novidade, que foi pensada por especialistas, pesquisadores e empreendedores, já tem sido testada em maior escala na Espanha, na Bélgica, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos. Um dos casos mais conhecidos é, inclusive, o da gigante da tecnologia Microsoft.

A filial japonesa da companhia adotou o regime diferenciado em 2019 durante um experimento. Em agosto daquele ano, os funcionários tiveram 4 dias de trabalho e 3 dias de descanso por semana, e o resultado foi surpreendente: a produtividade aumentou em 40%.

A análise do experimento chegou à conclusão de que colaboradores e diretores utilizaram o tempo que tinham com mais eficiência, cortando reuniões dispensáveis e até mesmo adotando o home office em alguns casos.

Por que aumentou o debate sobre o regime 4x3?

A discussão acerca da já estabelecida semana com 5 dias de trabalho se ampliou principalmente graças a pesquisas que alertam sobre o risco de ser workaholic.

Um relatório publicado no ano passado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra que, comparado a 2000, 2016 registrou aumento de quase 42% em mortes por doenças cardíacas causadas por longas jornadas de trabalho. O estudo concluiu que as chances de se ter um acidente vascular cerebral (AVC) aumentam em 35% se o trabalhador atua por 55 horas ou mais durante a semana.

Ainda, um artigo científico publicado em 2015 na Lancet, uma das principais revistas científicas do mundo, já apontava que o ideal seria que as pessoas trabalhassem menos de 40 horas semanais para que conseguissem levar uma vida saudável.

Além de gerar impactos positivos à saúde dos colaboradores (que precisa ser a prioridade das empresas), avaliações mostraram benefícios da proposta para a produtividade. A Câmara Municipal de Reiquiavique, capital da Islândia, provavelmente o país mais vanguardista nesse tema, realizou um grande teste.

Ao todo, 2,5 mil trabalhadores atuaram por 4 dias por semana entre 2015 e 2019. Ao fim dos estudos, chegou-se a conclusão de que os islandeses produziram a mesma quantidade ou até mais do que quando trabalhavam 5 dias. O resultado foi tão positivo que, atualmente, o país nórdico tem uma legislação trabalhista mais flexível que permite a implementação de menos de 40 horas semanais.

No Brasil, apesar de praticamente não termos dados sobre o assunto, muita gente já está preparada para a mudança. Um levantamento da plataforma de recrutamento Indeed, divulgado pelo Estadão, mostrou que 79% dos brasileiros aceitariam até mesmo aumentar as horas diárias para reduzir os dias da semana em que precisam trabalhar.

Qualidade de vida

Por aqui, são poucos os empreendimentos que adotaram o esquema 4x3 até agora. A fintech Gerencianet é uma das maiores empresas a aderirem ao modelo, tendo mais de 300 funcionários. A Zee.Dog, que desenvolve produtos para cachorros, começou a oferecer 4 dias de trabalho em 2020. Empreendimentos como AAA Inovação, Winnin, Shoot e NovaHaus também ganharam notoriedade após revelarem que os funcionários descansam 3 dias por semana.

Mas e aí, será que o modelo 4x3 é mesmo tão bom quanto parece? O TecMundo conversou com pessoas que atuam nesse sistema para verificar como a novidade funciona na prática.

Regiane Pereira é analista de Experiência do Cliente na Gerencianet. Em primeiro lugar, ela faz questão de ressaltar que só tem elogios à experiência. "O modelo adotado tem me permitido uma qualidade de vida que eu não havia experimentado antes no mercado de trabalho. Com a mente descansada, tenho produzido melhor do que na jornada anterior. Além disso, o foco tem sido direcionado ao que realmente importa no dia a dia, diminuindo atividades e reuniões desnecessárias", conta.

"[...] o foco tem sido direcionado ao que realmente importa no dia a dia, diminuindo atividades e reuniões desnecessárias".

Trabalho

Pereira relata que divide assim os dias de descanso: na sexta-feira, ela realiza tarefas domésticas; no sábado, passa um tempo de lazer com amigos e família; e o domingo é o momento de um descanso mais profundo. Quando ela consegue adiantar as atividades da sexta, ela divide o dia com estudos.

Por outro lado, a analista de Experiência do Cliente pontua que ainda sente certa dificuldade com a impossibilidade de que alguns setores deixem de atuar na sexta-feira, que é um dia útil normal para 99% das outras empresas.

"Estamos ajustando isso com escalas em que o colaborador trabalha na sexta, mas folga na segunda. E a comunicação com a equipe também precisa estar fina no sentido de entendermos que é preciso haver uma boa gestão do tempo para não sobrecarregar ninguém com esse dia a menos. Assim, fica positivo para todos", explica ela.

Flexibilidade total

Morgan Lemes é produtor pleno no estúdio de comunicação criativa Shoot. Ele diz ao TecMundo que atuar no esquema 4x3 tem sido bem satisfatório e que está sendo possível render bem mais no trabalho.

No caso do estúdio Shoot, Lemes comenta que os funcionários podem escolher se querem trabalhar de segunda a quinta-feira ou de terça a sexta-feira. Contudo, há bastante flexibilidade. "Se tu precisares trabalhar na segunda, podes trocar sem problemas. Tudo é sempre conversado, pois minha empresa tem a preocupação de cuidar da saúde de quem trabalha nela", conta ele.

Exercício físico

O produtor revela utilizar o dia a mais de descanso para estudar (já que está concluindo a faculdade), fazer exercícios físicos e, obviamente, descansar.

Ele é bastante taxativo e afirma que praticamente não há ponto negativo no esquema de trabalho de 4 dias na semana. A única pequena ressalva apontada pelo profissional é que, em alguns casos, é preciso ser transparente com fornecedores sobre o modelo.

"Não é o caso da minha empresa, mas eu acho que é preciso, porque podem surgir demandas no dia em que não haverá ninguém trabalhando, e, para que isso não ocorra, é extremamente importante a comunicação", finaliza Lemes.

Cerveja na sexta à tarde

Um estagiário que trabalha com SEO em uma startup e preferiu não se identificar confessa que a jornada de 4 dias de trabalho "tem sido incrível". Para ele, foi um espanto perceber como, em poucas semanas, os colegas conseguiram mudar a mentalidade para serem mais objetivos no cumprimento das tarefas.

"É inegável que, depois da mudança, todos os colaboradores estão mais motivados e querendo fazer que a jornada de trabalho de 4 dias seja um case de sucesso na empresa", acrescentou.

Ele concilia o estágio com a faculdade e utiliza o primeiro dia da folga para estudar, fazer cursos e escrever o trabalho de conclusão de curso. Durante a tarde, ele aproveita para tomar um açaí ou uma cerveja com amigos.

Cerveja

Sem muitas reclamações sobre o modelo 4x3, ele diz somente que gostaria de lembrar que as pessoas precisam alterar a forma como pensam para se adaptar a uma semana com 4 dias no escritório.

"Acho que o sucesso ou não depende muito da vontade dos colaboradores — para não falar que esse tipo de ação privilegia empresas que são mais flexíveis e confiam nos funcionários. Acho que uma empresa mais focada em disciplina e que seja controladora com os colaboradores pode encontrar mais problemas ao se adaptar para esse formato", salienta.

Por que as empresas adotam o 4x3?

A startup mineira Crawly, que tem 20 funcionários e atua com o desenvolvimento de soluções para busca, coleta e análise de dados, é outra empresa brasileira que adotou o esquema diferenciado.

"[...] é possível manter um bom nível de entrega com 4 dias de trabalho na semana".

A marca funciona com 4 dias de trabalho desde 2017, quando o negócio surgiu, período em que o modelo era ainda menos debatido e conhecido. "Inicialmente, era para auxiliar na busca de desenvolvedores, que são profissionais muito difíceis de se contratar. Mas, logo em seguida, a gente já passou para todo mundo esse benefício porque não vimos queda na performance. Percebemos que é possível manter um bom nível de entrega com 4 dias de trabalho na semana", explica João Drummond, diretor-executivo (CEO) da Crawly, ao TecMundo.

CrawlyJoão Drummond (à direita) e o sócio Pedro Naroga (à esquerda).

O executivo diz que ele e os sócios vão manter o esquema também porque perceberam o ganho em qualidade de vida para os funcionários, que passam o dia a mais de descanso com a família e os amigos, assim como o utilizam para viajar ou resolver questões pessoais.

Drummond afirma que, para a startup, o modelo oferece a vantagem de reter talentos. Além disso, há menos dificuldade na contratação, já que, segundo ele, o "pessoal gosta bastante da ideia" quando recebe a informação de que na Crawly só se trabalha 4 dias por semana.

Quebra de paradigmas

Marcelo Lopes é CEO da Eva Benefícios, empresa de cartão de benefícios flexíveis que tem 19 colaboradores atualmente. O diretor conta que a marca decidiu começar a atuar no 4x3 em 1° de julho deste ano. Desde então, todos os colaboradores estão emendando a sexta-feira com o sábado e o domingo em um grande fim de semana de 3 dias.

"A gente entende que trabalhar de segunda a sexta é um pouco ultrapassado e não significa que a pessoa vai entregar mais do que quem trabalha de segunda a quinta. Na verdade, a gente acredita no contrário, que a longo prazo quem atua de segunda a quinta vai ter um equilíbrio maior entre trabalho e vida pessoal", justifica ele.

Eva BenefíciosMarcelo Lopes, CEO da Eva Benefícios.

O novo plano de trabalho tem duração de 180 dias, sendo que, após esse período, os resultados serão avaliados. Lopes acredita que o regime será mantido depois do prazo, já que há uma expectativa positiva de que todas as entregas planejadas para uma rotina de trabalho de 5x2 continuem factíveis no 4x3.

Por outro lado, ele diz que há indicadores negativos e que a gerência os está avaliando. Se os funcionários estiverem realizando muitas horas extras, significa que as extintas 8 horas de trabalho da sexta foram diluídas entre segunda e quinta, por exemplo.

Como uma empresa se prepara para o modelo 4x3?

Lorena Lage, advogada especialista em startups que conduziu a adaptação na Crawly, conta que alguns dos principais desafios da alteração de regime são a estruturação trabalhista e a formalização dos novos contratos. "Ela precisa ser muito pensada especialmente quando a gente trata do teletrabalho, já que no home office sequer se fala em controle de jornada. Nesses casos, é muito comum as empresas estarem focadas na produtividade e nas entregas", explica.

Ela defende que é importante analisar as minúcias da adaptação porque há um receio por parte dos diretores de que seja necessário dar um passo atrás, voltando ao 5x2. "Nesse cenário, é essencial que as empresas se planejem. É preciso estruturar formatos para que não haja redução de produtividade ou desgaste junto aos colaboradores e para que os benefícios sejam maiores do que os malefícios", reforça Lage.

Lorena LageAdvogada especialista em startups Lorena Lage. (Fonte: Lage & Oliveira Advogados/Divulgação)

A especialista argumenta que, para fazer a mudança na Crawly, houve uma preocupação de deixar claro qual era o sistema também para novos candidatos na fase de recrutamento e seleção. Para os possíveis novos colaboradores, já eram dados detalhes sobre o dia fixo retirado, por exemplo.

Lage indica ainda que as empresas de tecnologia estão na vanguarda desse movimento devido ao alto turnover, que é um índice que mede a rotatividade de funcionários dentro de uma empresa. Os colaboradores estão saindo e entrando de companhias da área pela grande demanda de trabalhos e pela baixa oferta de profissionais. Com isso, os empreendimentos estão disputando "na unha" os trabalhadores, que podem acabar optando por vagas que oferecem benefícios como a jornada 4x3.

Mudança de mentalidade

Lina Nakata, pesquisadora e especialista em Gestão de Pessoas, destaca que o ponto mais sensível na adoção do 4x3 é a sensibilização dos executivos das empresas. Ela afirma que quem ocupa os cargos de comando pode ter receio de perder o controle ou, pelo menos, um sentimento de que o time está produzindo menos.

"A transformação necessária é a mudança da mentalidade dos próprios líderes, que precisam ter equipes maduras e compreender que uma jornada reduzida efetivamente leva a uma eficiência melhor, mais desempenho, menos tempo e mais qualidade de vida", defende Nakata.

Ela completa que essa "revolução" geralmente é proposta pelo CEO ou presidente da companhia, que acaba percebendo uma movimentação no mercado nesse sentido. Nakata salienta, porém, que as discussões podem ser encabeçadas também pelos departamentos de Recursos Humanos (RH), já que esse é o setor que mais entende dos benefícios e do bem-estar que uma jornada menor de trabalho proporciona.

"Se os profissionais de RH conseguem visualizar a cultura organizacional, a performance do pessoal e a maturidade das equipes, são as melhores pessoas para propor essa alteração junto às lideranças, pois justificam a nova modalidade e depois apresentam os resultados de engajamento e produtividade", finaliza a especialista.

O modelo 4x3 é o futuro do trabalho?

O mundo corporativo é bastante criticado pelos "modismos", ou seja, ações gerenciais que todos sabem que são passageiras e acabam não durando muito tempo. Por causa disso, há até mesmo treinamentos específicos para que líderes consigam identificar se algo é mesmo uma tendência ou apenas uma solução enlatada que foi vendida como revolucionária ou "disruptiva", como se costuma dizer no mercado.

Considerando esse cenário conhecido, é comum pensar que o trabalho 4x3 pode ser mais uma moda. Contudo, há bons argumentos para sustentar que o esquema pode ter vindo para ficar.

Trabalho

Drummond, da Crawly, acredita que a adoção do sistema é inevitável porque as empresas começarão a perceber que ele é favorável para todo mundo — e, com a alta competitividade, muito possivelmente as corporações que oferecem trabalho de somente 4 dias na semana sairão na frente.

"Eu acho que os líderes não aplicam por medo de perder produtividade. Empresas maiores têm dificuldade para trabalhar com 1 dia a menos também, já que às vezes [a medida] não [se] justifica para toda a cadeia. Além disso, há clientes que precisam de um contato direto. Esses são alguns dos freios", ressalta ele.

CrawlyJoão Drummond (à direita) e o sócio Pedro Naroga (à esquerda).

Lopes, da Eva Benefícios, faz um apelo à memória de praticamente todo mundo para argumentar que o entendimento laboral mudará nos próximos anos. Ele cita aquelas sextas-feiras em que a pessoa está tão esgotada mentalmente pelo acúmulo do cansaço da semana toda que mal consegue raciocinar.

O executivo, inclusive, lembra o caso principalmente de mulheres, que costumam fazer dupla jornada e cuidam dos filhos. Por fim, de acordo com ele, é impossível achar que no modelo 5x2 as pessoas chegam ao fim da semana com a mesma energia que têm na segunda-feira.

"Eu entendo que o futuro do trabalho vai passar por essa compreensão das empresas de que todo mundo precisa de um equilíbrio maior entre vida pessoal e trabalho. Na nossa visão, isso passa por dar mais 1 dia de descanso", explica Lopes.

Marcelo LopesMarcelo Lopes, da Eva Benefícios.

Luiz França, especialista em RH, explica ao TecMundo que no passado o mercado de trabalho global já teve jornadas muito mais pesadas. No século 18, por exemplo, norte-americanos trabalhavam em fábricas em médias de 70 horas semanais, o que daria 14 horas diárias de segunda a sexta ou 11 horas de segunda a sábado. Foi somente no século passado que as linhas de produção da Ford começaram a adotar as 40 horas semanais.

"Todas as vezes que as mudanças estão chegando, nós temos os heróis da resistência dizendo que elas vão prejudicar os modelos de negócios, que vão dificultar a realização dos trabalhos, que a produtividade das organizações vai cair, que as organizações não vão conseguir sobreviver etc. Ainda estamos com um nível de consciência muito baixo em relação aos futuros modelos de trabalho", defende França.

O especialista comenta que é preciso repensar o modelo de horas trabalhadas. Ainda, diz que na economia moderna, da qual o setor industrial é uma fatia menor, os empreendimentos do mundo todo deveriam começar a contratar e exigir dos funcionários entregas e resultados em tarefas específicas que podem ser realizadas sem um parâmetro de tempo específico.

Luiz FrançaLuiz França, especialista em RH.

Para ele, a própria exigência de manter os colaboradores frequentando presencialmente um escritório é pouco compatível com a agilidade do mundo moderno. "Não é porque um funcionário está no ambiente corporativo que necessariamente está engajado ou motivado", complementa França.

"Eu costumo brincar que empresa significa 'pessoa presa em algum ambiente'. Quem é o dono do presídio nesse caso? Precisamos libertar as pessoas para que elas possam entregar o melhor que elas podem para as organizações. Buscar os melhores talentos de cada ser humano para convertê-los em produtos e serviços magníficos. Não ficar controlando horas. Controlar horas em algum momento será uma conversa do passado", prevê o especialista.

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