Da humilhação à redenção: PlayStation, o sistema sinônimo de video game

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A Sony é uma das principais companhias de eletrônicos do Japão e do mundo, mas nunca se deu muito bem com computadores e produtos relacionados. Um jovem engenheiro da companhia, Ken Kutaragi, quis quebrar esse estigma, lançando um video game com a marca. Isso foi há 20 anos.

O projeto PlayStation, a princípio, seria desenvolvido em parceria com a Nintendo, mas a casa de Mario traiu a Sony e juntou forças com a Philips. Mal sabia a companhia de Quioto que estava criando um monstro, um que quebrou recordes e levou a Sony à liderança no mercado de video games, tudo isso em apenas uma geração.

O PlayStation foi lançado no Japão em 3 de dezembro de 1994

Razões do sucesso

Surfou na tendência – O PlayStation foi projetado para ter uma forte capacidade de gráficos poligonais, embora essa técnica ainda fosse pouco utilizada para games. Mas, quando foi lançado, a situação estava começando a mudar, muito em função do impressionante Virtua Fighter.

Econômico – O console sempre foi mais barato que os concorrentes, e a Sony tinha uma política agressiva de corte de preço.

Royalties menores – Fazer um jogo para PlayStation custava 900 ienes (US$ 9) por título, enquanto que, na Nintendo, o valor era de 3 mil ienes (US$ 30). E ainda havia uma taxa de risco para os jogos em cartucho.

Fácil de programar – A Sony inaugurou, nos video games, o conceito de biblioteca de software, que facilitava a vida dos estúdios na hora de fazer os jogos. Além disso, a arquitetura do console era mais simples que a dos rivais.

Títulos de qualidade – As boas condições de licenciamento permitiram que várias companhias fizessem jogos para o aparelho. Assim, o video game recebeu alguns dos melhores jogos de sua época, muitos exclusivos, como Final Fantasy VII.

Bolso cheio – A Sony fez campanhas de marketing milionárias para promover o console e acertou o tom nas propagandas. Aquela do Crash Bandicoot "desafiando" o Mario é hilária.

A história completa

A ideia de um video game feito para Sony brotou na cabeça do engenheiro Ken Kutaragi em 1984, quando era funcionário do laboratório de processamento de informação. Numa companhia dominada pela cultura analógica, esse era um oásis da pesquisa digital e foi onde Kutaragi se deparou com o System-G, um equipamento que produzia gráficos para transmissões de TV.

Inovador para a época, o aparelho conseguia animar, em tempo real, imagens poligonais ("3D") com texturas. Diante da tecnologia de ponta que havia visto, imaginou como seria incrível mesclar isso com o Famicom (video game que é nos EUA é conhecido como NES), outra máquina que fascinava o jovem engenheiro.

Com a certeza de que os video games se tornariam o principal sistema de entretenimento dentro do lar, Kutaragi se aproximou da Nintendo, com o intuito de formar uma parceria. O primeiro passo foi convencer a casa de Mario a adotar um chip de som avançado que ele mesmo havia projetado para ser usado no Super Famicom (Super NES), que estava sendo desenvolvido para suceder a geração dos 8 bits.

Ken Kutaragi, o "pai do PlayStation", recebe homenagem na GDC de 2014

Nasce o Play Station

Com a primeira parceria fechada, veio o segundo passo: o projeto Play Station, assim mesmo, com um espaço entre as palavras. O nome é uma analogia: se workstations são estações de trabalho, então, uma estação de jogos pode ser uma "play station". A ideia era unir a tecnologia do Super Famicom com o poder do CD-ROM, que tinha uma capacidade de armazenamento muito maior que um cartucho.

O projeto teve início em outubro de 1989 e um contrato oficial foi firmado no primeiro dia do ano seguinte. Pelo acordo, ficou definido que a Sony iria produzir um aparelho que seria basicamente um Super Famicom com um CD-ROM e controlaria o licenciamento dos títulos em disco, enquanto a Nintendo criaria um adaptador de CD para seu video game de 16 bits e teria domínio sobre os games em cartucho.

Em meados de 1990, a Sony já tinha um protótipo do Play Station e o projeto seguia tranquilo para ser anunciado na CES (Consumer Electronic Show, a principal feira de eletrônicos dos EUA) de verão do ano seguinte. Dias antes do evento, Kutaragi estava indo para a Nintendo para combinar os últimos detalhes, quando ficou sabendo que a Big N firmou parceria com a Philips na produção do CD-ROM do Super Famicom.

Protótipo do Play Station, um aparelho que rodaria cartuchos do Super NES e jogos em CD

E começa a guerra

Apesar disso – talvez não houvesse tempo para cancelar –, a Sony anunciou como planejado o projeto Play Station. Durante a CES, em junho, a Nintendo soltou a bomba e revelou sua parceria com a Philips para o mercado. Segundo a casa de Mario, foi uma questão técnica que motivou a decisão, e o contrato com a Sony ainda estava valendo (a Sony podia seguir com seu projeto, mas a Nintendo apoiaria o outro formato).

A empresa de Quioto se arriscou bastante nessa manobra, já que a Sony era a fornecedora dos chips sonoros do Super Famicom/NES. Embora cogitado, a Sony não suspendeu a fabricação da peça, pois entendeu que tinha responsabilidades de prestador e que o conflito era em outro setor da companhia.

O impasse entre as duas empresas continuou até maio de 1992 e, no mês seguinte, houve uma reunião decisiva para o futuro dentro da Sony. A essa altura, Kutaragi achava que a companhia deveria perseguir um formato próprio e até tinha alguns estudos usando a tecnologia do System-G.

No entanto, havia resistência forte dentro da corporação para a entrada no setor de video games: afinal, por que uma empresa tão prestigiosa como a Sony deveria se meter com brinquedos? Esse era o pensamento geral. A outra opção era continuar o projeto como fora planejado antes.

O design do controle era inovador para a época e influenciou os joypads que viriam depois

Um projeto fora de escala

Kutaragi foi perguntado pelo presidente Norio Ohga qual era a escala de um chip necessário para criar o PlayStation como o engenheiro imaginava. E a resposta foi: um do tipo gate array com 1 milhão de células. Parecia até piada: a Sony tinha capacidade de produzir um com apenas 100 mil células. No entanto, Kutaragi sabia que algumas empresas no mundo estavam chegando a essa escala.

Kutaragi fez questão de lembrar a humilhação que a Nintendo causou à Sony. A fúria de Ohga atingiu o limite e desafiou o engenheiro: "Quero ver você conseguir". Ficara decidido que a companhia iria desenvolver uma nova plataforma. Nascia aqui o projeto PS-X, mas o nome do video game continuou sendo PlayStation (agora sem espaço entre as palavras), pois a marca já havia sido registrada.

A equipe de desenvolvimento foi transferida para o prédio da gravadora Epic Sony, e essa aproximação influenciou muito no modelo de negócios do video game. Enquanto isso, Kutaragi trabalhava nas especificações do console, que deveria ser similar ao System-G. Para ter uma máquina que rodasse gráficos poligonais de ponta em tempo real, Kutaragi escolheu um chip que combinasse o R3000A, usado em computadores da Silicon Graphics, com um GTE capaz de processar, em teoria, 1,5 milhão de polígonos por segundo, um número absurdo para a época.

Vários logotipos foram testados até se chegar ao modelo definitivo

Quem quer fazer jogos para o PlayStation?

Mais difícil que projetar a máquina foi convencer as produtoras a aderirem ao sistema. A visão da indústria, a japonesa, ao menos, era de que os gráficos poligonais estavam cedo demais para aparecer. No entanto, em agosto de 1993, foi exibido em uma feira de arcades no Japão um jogo que mudaria a cabeça das companhias. Era Virtua Fighter, da rival Sega, o primeiro game de luta feito em 3D. Todo mundo se espantou com as possibilidades da nova tecnologia de gráficos.

Em 27 de outubro, a Sony anunciou a criação da Sony Computer Entertainment, que cuidaria dos negócios de games. Nos dias seguintes, ficou marcada a primeira apresentação do PlayStation às produtoras em várias partes do mundo. A famosa demo do dinossauro impressionou os engenheiros de software das companhias. Jez San, da Argonaut, achava que a demo estava rodando em estações da Silicon Graphics (essa eram máquinas que fizeram efeitos especiais para filmes como O Parque dos Dinossauros).

Um dos apoios mais importantes veio da Namco, que preparou uma conversão perfeita de Ridge Racer para a estreia do aparelho, além de franquias como Tekken. A casa de Pac-Man estava insatisfeita com a Nintendo, pois perdera privilégios na renovação do contrato de softhouse licenciada. A Sony também comprou a Psygnosis, que fez WipEout. A aquisição foi importante para a criação de biblioteca de software que funcionava em PC.

Apoio às produtoras

O conceito de biblioteca era uma novidade em se tratando de video game, e esses softwares que realizam funções comuns do sistema (como ler o CD, por exemplo) atraíram muitas produtoras pequenas para o barco do PlayStation. Até meados de 1995, 120 companhias dos EUA se inscreveram para fazer jogos para a plataforma, além de 100 da Europa e 250 do Japão.

A mídia em CD permitiu baixar os preços da cadeia produtiva do game. A Sony cobrava 900 ienes (US$ 9), entre prensagem e royalties, de quem quisesse lançar títulos para o PlayStation, contra os 3 mil ienes (US$ 30) que precisavam ser pagos para colocar um jogo de Super Famicom na praça (fora a taxa de risco que os cartuchos embutiam). Assim, para o consumidor final, um jogo para o console da Sony saía geralmente por 5,8 mil ienes (US$ 58), enquanto não era raro um cartucho de Super exceder 10 mil ienes (mais de US$ 100).

A gigante dos eletrônicos também conseguiu livrar as publishers japonesas de vender através de uma cadeia corrupta de atacadistas controlada pela Nintendo. A Sony funcionava como fábrica e distribuidora de jogos do PlayStation, permitindo um controle mais eficiente de produtos lançados no mercado. Em geral, se prensava uma quantidade abaixo da demanda esperada e, em caso de o jogo esgotar, fabricava-se novas cópias. A manobra só era possível pela mídia CD, mais rápida e barata de produzir.

A corrida dos 32 bits

Foi assim, bem preparada, que a Sony lançou o PlayStation em 3 de dezembro de 1994. Mesmo assim, sofreu uma forte concorrência do Saturn, lançado 12 dias antes. A Sega tinha como ás na manga o consagrado Virtua Fighter, mas a Sony também tinha seu "killer app" na estreia: Ridge Racer. Cem mil unidades do Play estavam nas lojas japonesas no lançamento e, nos pontos de venda mais famosos, o video game havia desaparecido antes do meio-dia. Uma multidão havia se juntado, ainda de madrugada, para (tentar) garantir o console. Mais 200 mil unidades chegariam até o final do ano. Já o Saturn vendeu 250 mil unidades em dois dias.

Agora, o palco da batalha passa a ser os Estados Unidos. Na E3 de 1995, realizada entre 11 e 13 de maio, a Sega anuncia o lançamento surpresa do Saturn (oficialmente, ainda estava marcado para 2 de setembro), por US$ 399. A Sony contra-atacou com Steve Race, presidente da Sony Computer Entertainment dos EUA, que simplesmente falou "US$ 299" na conferência e saiu de cena. Era apenas o primeiro golpe do PlayStation no console da Sega.

No Japão, Ken Kutaragi iniciava uma guerra de preços contra a rival. O Play já era mais barato que o Saturn, mas teve um corte de 10 mil ienes em julho, e o aparelho passou a custar 29,8 mil ienes. A fabricação do video game da Sega era cara, pois tinha uma arquitetura complexa, mas não restou alternativa à companhia a não ser baixar o preço do console em 20% e sacrificar sua saúde financeira. O Saturn ainda vencia o Play no Japão: 1,3 milhão contra 1,2 milhão.

Chegada com pompa

Amparado por uma campanha de marketing de US$ 40 milhões, o PlayStation chegou aos Estados Unidos em 9 de setembro. Segundo o livro Service Games: The Rise and Fall of Sega, de Sam Pettus, o console vendeu 100 mil unidades em dois dias. O lançamento prematuro do Saturn não deu certo e, quando o video game da Sony chegou a 300 mil unidades, o da Sega ainda estava em 120 mil. Na Europa, o Play foi lançado em 29 de setembro, também com uma campanha milionária.

No final de 1995, a Sony chegou ao número mágico de 3 milhões de PlayStation enviados para o varejo, condição que muitas produtoras grandes impuseram à companhia para fazer jogos para a plataforma. Coincidência ou não, em fevereiro do ano seguinte, a Square passou a fazer games para o console da Sony, depois de muito tempo dedicada à Nintendo. Sim, a franquia Final Fantasy, capaz de desequilibrar a guerra dos video games, havia mudado de casa.

O casamento entre a Sony e a Square rendeu muitos frutos. Final Fantasy VII foi um episódio emblemático na série, tornando o RPG japonês mais cinematográfico. O sucesso foi tanto que se tornou o segundo jogo mais vendido do PlayStation, com 9,9 milhões de cópias vendidas (perde apenas para Gran Turismo, com 10,85 milhões de cópias). Não bastasse isso, o estúdio lançava praticamente um grande título por trimestre: além de Final Fantasy VIII e IX, o console teve Final Fantasy Tactics, Einhänder, Xenogears, Parasite Eve (e sua continuação), Brave Fencer Musashi, Legend of Mana, Chrono Cross e Vagrant Story.

Novos clássicos

O ano de 1996 ficou marcado pelos primeiros clássicos da era PlayStation, quando saíram Resident Evil, Crash Bandicoot, Tomb Raider e PaRappa the Rapper. Assim, nos Estados Unidos, o Saturn continuava comendo poeira do console da Sony: em meados do ano, a contagem estava em 1,3 milhão de unidades para o Play contra 500 mil do video game da Sega. O aguardado aparelho da Nintendo, o 64, foi lançado em junho no Japão e em setembro nos Estados Unidos e, apesar do bom desempenho nas prateleiras, o PlayStation estava bem à frente.

Em 1997, as vendas do Play aceleraram. Nesse ano saiu o aguardado Final Fantasy VII, além de Castlevania: Symphony of the Night e Gran Turismo, título que trouxe um realismo inédito para os jogos de corrida nos video games. A Sony perseguia de forma agressiva a guerra de preços, cortando o valor de etiqueta para US$ 100 nos Estados Unidos. Os concorrentes tiveram que acompanhar. Nesse mesmo ano, começaram a surgir rumores sobre o sucessor do Saturn, e o ímpeto do video games de 32 bits da Sega caiu bastante (até a Sega dos EUA admitia que o Saturn não era o futuro dela).

A Nintendo também admitiu a derrota. Quem disse isso foi ninguém menos que Hiroshi Yamauchi, o então poderoso presidente da Nintendo. A essa altura, em meados de 1997, o PlayStation havia sido vendido no atacado 6,5 milhões de unidades somente no Japão, enquanto que o Nintendo 64 estava em 5,8 milhões no mundo todo. A Sony havia vencido a guerra da quinta geração de consoles logo na sua primeira tentativa.

A coleção de clássicos do PlayStation só aumentou desde então: apareceram Tekken 3, Metal Gear Solid, Silent Hill, Driver, Tony Hawk's Pro Skater, fora os jogos da Square já mencionados. O PlayStation chegou ao final de sua vida como vencedor absoluto de sua geração, tendo vendido 102,49 milhões de unidades, um recorde para a época, que só foi superado pelo sucessor, o PlayStation 2.

O PlayStation foi o primeiro console a vender mais de 100 milhões de unidades

Curiosidades

Analógico – O primeiro controle Dualshock estreou no PlayStation em novembro de 1997. O controle-padrão do video game não tinha direcionais analógicos.

Jogo de bolso – "Inspirado" no Dreamcast, a Sony lançou em 1999 um aparelho chamado Pocket Station, que era um memory card com botões e uma tela (parecido com um Tamagotchi). Foi lançado somente no Japão e não fez muito sucesso.

Remodelagem – O PlayStation ganhou uma versão compacta no ano 2000. Começava aqui a moda da Sony em lançar edições "slim" de seus aparelhos.

Escuro – Por imposição do presidente Norio Ohga, os discos do PlayStation tinham que ser diferentes de um CD comum. A solução foi pintá-los de preto.

Ponto fraco – O PlayStation tinha capacidade maior que o Saturn para processar gráficos 3D, mas, em jogos de luta 2D, o video game da Sega era melhor por possuir uma entrada de cartucho através da qual podia expandir a memória. X-Men vs. Street Fighter e Marvel Super Heroes vs. Street Fighter era irreconhecível (e bem ruim) no Play.

Defeito – Os primeiros PlayStation tinha um leitor de disco cuja plataforma era feita de plástico e se desgastava facilmente, desalinhando a unidade ótica. Para contornar isso, podia-se tentar inclinar ou colocar o video game de ponta-cabeça, ou correr para uma assistência.

Farto – O PlayStation teve 7.918 títulos, que venderam, no total, 968 milhões de cópias.

Top 5 - Os cinco jogos mais vendidos do console são Gran Turismo (10,85 milhões), Final Fantasy VII (9,9 milhões), Gran Turismo 2 (9,37 milhões), Final Fantasy VIII (8,6 milhões) e Tekken 3 (8,5 milhões).

O PlayStation foi o lar de vários jogos memoráveis, como Final Fantasy VII

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