Todo Dia a Mesma Noite traz visualidade necessária à tragédia da Kiss

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Imagem: Netflix

Narrativas baseadas em casos reais são, de certa forma, uma espécie de beco sem saída. Por um lado, elas costumam parecer mais atraentes ao espectador: nós costumamos nos interessar mais por uma história quando sabemos que ela guarda correspondência com algo que de fato aconteceu no mundo.

Mas, por outro, este compromisso com a realidade abre margem a certas cobranças. O quão verdadeiro é aquilo que está sendo mostrado na tela? Já que é (obviamente) impossível reconstituir a realidade, o quão próximo se consegue chegar de um fato a partir dos recursos típicos da ficção?

Todo Dia a Mesma Noite, minissérie em cinco capítulos da Netflix, traz um fator a mais. Dirigida por Júlia Rezende, ela busca retratar um dos mais horríveis fatos recentes da história do Brasil: o incêndio criminoso ocorrido na boate Kiss no dia 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e que matou 242 pessoas, além de vitimar centenas de outras. A maior parte dos falecidos era de estudantes universitários (Santa Maria, vale lembrar, é uma cidade que gira em torno da UFSM e de outras instituições de ensino).

Trata-se de uma história horrível, e que foi contada com esmero no livro reportagem Todo Dia a Mesma Noite, da jornalista Daniela Arbex. É esta obra que baseia a série da Netflix, com o desafio de trazer um relato visual a uma história arrasadora e que, mesmo dez anos depois, segue urgente, uma vez que é cercada pela impunidade e pelas burocracias da legislação brasileira.

Uma história de erros

(Fonte: Netflix)(Fonte: Netflix)Fonte:  Netflix 

A série Todo Dia a Mesma Noite acompanha a tragédia da Kiss a partir de quatro ângulos principais, que envolvem quatro famílias: a de Suzana (Debora Lamm) e Pedro (Thelmo Fernandes), que perdem a filha Marienne; de Ricardo (Paulo Gorgulho) e Lívia (Raquel Karro), que perdem o filho Marco; de Geraldo (Leonardo Medeiros) e Telma (Bel Kowarick), que perdem Guilherme; e Ana (Bianca Byington), que perde o caçula Felipinho.

A escolha de centralizar a trama em poucos casos é acertada, pois dá a chance de que todas as famílias, de alguma forma, sejam representadas, e que suas histórias tomem mais tempo de tela. Estes pais são também abordados por terem tomado frente na busca pela justiça frente ao que havia acontecido.

Sem dúvida, os episódios mais impactantes de Todo Dia a Mesma Noite são os dois primeiros, que nos dão visualidade ao acontecimento horroroso: o incêndio na Kiss e a busca desesperada dos pais por seus filhos, culminando em uma cena devastadora (ainda mais por ser real) das famílias tendo que reconhecer os corpos estendidos no principal ginásio esportivo da cidade. É impossível não se comover.

Estamos diante, como o livro e a série deixam claro, de uma sucessão de erros: o da banda Guapos Baladeiros (versão ficcionalizada do grupo real, Gurizada Fandangueira), que usou um artefato pirotécnico que não poderia ser empregado em lugares fechados, mas que era mais barato; dos donos da boate, que operavam sem alvará; e, claro, de toda a cadeia burocrática da Prefeitura de Santa Maria, que não funcionou como deveria e deixou que tudo isso acontecesse.

Depois de perderem seus filhos, os pais passam pela peregrinação de buscar alguma justiça possível frente a algo que tenta ser enquadrado como uma fatalidade, um acidente. Ocorre que, por mais que todos os envolvidos tenham sido vitimados (inclusive os responsáveis pelo ato criminoso, que certamente carregarão essa tragédia consigo para o resto de suas vidas), há erros que precisam ser apontados para que fatos deste tipo não se repitam.

Esta é uma história vasta que ainda segue se desdobrando no tempo presente. Penso, então, que a série acerta ao fazer um recorte: ela se foca por fim no processo que os pais tomaram por terem fixado cartazes em que criticavam a ineficiência dos órgãos públicos na abordagem do caso. Uma mãe foi processada também por um artigo publicado em um jornal da cidade.

Ou seja, alguns pais que presidiam a associação das vítimas da tragédia da Kiss se tornaram réus de um processo que poderia condená-los à prisão. Somava-se, portanto, mais camadas de absurdo em cima de uma tragédia absurda. Os processos contra eles foram extintos em 2018.

A dramatização de um fato terrível

(Fonte: Netflix)(Fonte: Netflix)Fonte:  Netflix 

Comecei este texto escrevendo sobre a dificuldade de dramatizar fatos reais. Penso que, no caso de uma tragédia deste porte, há uma dificuldade a mais, que é o desafio de lidar com certas camadas de ficção que precisam ser colocadas quando se reconstitui um fato devastador.

Todo Dia a Mesma Noite é uma dramatização. É possível dizer que, não importa o quão triste seja a série, ela nem chega perto do que foi o acontecimento, que beira o indizível. Portanto, toda a produção (o que envolve aqui a performance dos atores, o roteiro, os recursos cenográficos) tem o desafio imenso de fazer jus ao fato sem parecer forçar um sensacionalismo em torno de algo que já é devastador por si mesmo.

A série acerta em momentos-chave que, tal como no livro de Daniela Arbex, têm a capacidade de traduzir de maneira cirúrgica o que passaram esses pais e familiares. Dentre essas cenas, estão a busca dos pais por um carro em uma garagem, em uma tensão crescente (se o carro estivesse lá, significaria que o filho estava na boate); os corpos enfileirados com celulares tocando sem parar (eram os pais desesperados ligando aos filhos); ou o ensaio fotográfico com os sobreviventes.

Todos estes são momentos em que a produção da Netflix brilha, no sentido de conseguir expor, de maneira audiovisual, a glória do jornalismo quando é bem feito: a de capturar a essência dos fatos e fazer com que o leitor/ espectador se sinta na pele de alguém que passou por uma determinada experiência.

Isto não significa que a dramaturgia da série não tenha algumas fragilidades. Destaco aqui o tom forçado do texto em certos momentos, sobretudo no que diz respeito ao sotaque. Há uma certa estereotipação exagerada para deixar evidente que a tragédia ocorreu no Rio Grande do Sul. Isso se evidencia em alguns recursos cênicos, como as roupas pilchadas e a sensação desconfortável na fala de boa parte dos atores.

Mas isso não torna Todo Dia a Mesma Noite menos importante. Sua maior contribuição é fazer com que a memória desse fato permaneça viva e incômoda, mesmo dez anos depois. É o único recurso que temos para que outras famílias não passem pela mesma coisa.

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