Casamento às Cegas mostra que continuamos antiquados para o amor (crítica)

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Imagem: Netflix

Há certos tipos de reality shows que parecem funcionar muito bem em vários países. Casamento às Cegas, da Netflix, é um desses casos. E a razão é bem simples: por trás de uma dinâmica inusitada (a ideia de que é possível conhecer o par perfeito sem nunca ter visto o rosto dele ou dela), há a chance de encarar as nuances das relações amorosas conforme elas se manifestam em diferentes culturas.

É esta a premissa essencial dos reality shows de convivência, que exploram a proposta de que, naquilo que há de mais miúdo nas trocas humanas, sempre emerge o fato de que as relações são sociologicamente determinadas. Em outras palavras, o amor não é “cego”- na verdade, ele está inegavelmente permeado por aquilo que foi constituído pela cultura.

É por isso que assistir a Casamento às Cegas Brasil é uma oportunidade de não apenas ver pessoas se constrangendo em público no intuito de tentar encontrar sua cara metade. Um programa deste tipo serve para constatarmos que há muitos valores arcaicos que seguem existindo entre nós, brasileiros, mesmo que nos reconheçamos como progressistas, modernos e atualizados.

Diferente da primeira na temporada 2 de Casamento às Cegas Brasil, observamos um claro esforço pela diversidade entre os representantes: são cinco casais formados por cinco pessoas brancas e cinco pessoas negras (um casal é inter-racial). Ainda assim, as dinâmicas do que há de pior na “cultura amorosa” brasileira seguem vigorando e nos estarrecendo.

Gordofobia no Casamento às Cegas Brasil

(Fonte: Netflix)(Fonte: Netflix)Fonte:  Netflix 

Quem acompanha o programa brasileiro e suas versões estrangeiras sabe bem este reality funciona. Na atração, uma série de mulheres e homens solteiros participa de uma dinâmica em que vão até salinhas reservadas (as cabines ou pods) e passam por “encontros” com possíveis pares, só que separados por uma parede.

Eles precisam, portanto, passar pela experiência da conquista amorosa sem ver com quem estão falando. Depois de um tempo, caso haja uma proposta de casamento, eles convivem por cerca de um mês para então passar pela cerimônia do casório.

A premissa do “amor cego” parte da ideia de que uma boa parte das relações românticas, por envolverem atração física, seria fútil ou superficial (o que é um raciocínio bem contestável, vale lembrar). Ao eliminar o quesito “aparência”, os casais poderiam então se relacionar pelo que realmente são “por dentro”.

Isso envolveria, aliás, descartar outros aspectos da vida humana, como a etnia. Ou seja, quem se apaixonar pelo outro faria isso por conta da “alma”, e não por outras mediações externas, descartáveis.

O fato de que essa premissa é bastante falha já se explicita pelo fato de que quase todos os participantes negros e negras mencionam que preferem se relacionar com pessoas da mesma cor. E a razão não tem nada a ver com questões físicas: só quem enfrenta o sofrimento do racismo poderia também entender na pele o que isso significa, e compartilhar a mesma vivência.

Mas é justamente essa a graça da temporada 2 – o fato de que vemos casais se formarem que aparentemente não têm nada a ver um com o outro. Nesta edição, há uma moça negra chamada Thamara, do Rio de Janeiro, que, depois de ser cobiçada por vários, acaba se encantando por um gaúcho chamado Alisson, cujos fenótipos e sobrenome remetem que ele tenha vindo de uma família alemã ou italiana. Essas diferenças seriam facilmente contornáveis - e isso não acontece, significa que o amor "tem olhos"?

A maior reverberação dessa temporada, contudo, envolveu um sujeito que não foi até o final do programa (sua história foi tão bizarra que ela foi incluída na edição final com detalhes). Falo aqui de um homem chamado Paulo, com pinta de coach, que ficou dividido entre duas mulheres. Uma delas estava forçando-o a tomar uma decisão e acabou desistindo do programa. Consequentemente, ele propôs casamento à outra.

A escolhida, que se chama Amanda, é uma mulher gorda. Ao vê-la, ele claramente se sentiu constrangido e não a beijou (foi a primeira vez que vi isto acontecer nas temporadas a que assisti). Paulo ainda deu uma desculpa de “não estar preparado para uma mulher forte” em uma forma de remendar a sua evidente homofobia. Mas ele, por razões óbvias, foi execrado nas redes sociais.

As tenebrosas relações humanas

(Fonte: Netflix)(Fonte: Netflix)Fonte:  Netflix 

Diferente da versão americana de Casamento às Cegas, na edição brasileira, não há uma situação recorrente que é explorar os arrependimentos entre os casais que foram formados – por exemplo, quando um membro de um casal se sente chateado ao ver a noiva ou o noivo de outro concorrente por achá-lo mais atraente que seu próprio par. A temporada 2 explorou muito mais as questões voltadas às dificuldades entre as próprias duplas e as decisões que precisam ser levadas em conta na hora de ficar com alguém.

E, como é frequente acontecer, boa parte da reflexão que se levanta pelo programa tange ao que as mulheres estão dispostas a fazer para encontrar um marido. O que se vê, como norma geral (há raras exceções), são mulheres muito mais bem-sucedidas e bem-resolvidas do que seus pretendentes, mas que ainda encaram um casamento como uma meta de vida.

Um dos casos que mais repercutiu foi o de um homem chamado Tiago, que ficou indeciso entre duas mulheres: uma mineira chamada Vanessa, que se apresentou como “administradora das fazendas de família”, e outra que dizia ser dona do próprio negócio. Só que, em certo momento da temporada, ele declarou que está desempregado.

Ainda assim, ambas toparam seguir disputando o coração do moço. Quando Tiago tomou a sua decisão, a pretendente que foi rejeitada acabou dando um conselho para a outra para que abrisse o olho, pois ele estava “falido”. Ou seja: mesmo reconhecendo Tiago como um barco furado, ambas estavam dispostas a casar com ele.

O que nos leva a pensar que Casamento às Cegas Brasil faz sucesso pois cumpre uma função social importante. O programa da Netflix desnuda o quanto, mesmo com tantas discussões e avanços na vida de homens e mulheres, continuamos propensos a seguir padrões arcaicos de felicidade que claramente poderiam ser repensados, para benefício de todos nós.

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