Physical é o retrato tragicômico de uma dona de casa em crise (crítica)

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Imagem: Apple TV

Sheila Rubin parece ter tudo que uma mulher (nos anos 80) precisa. Ela é linda, magra, casada, com uma filha, e acabou de se mudar para a ensolarada California. O marido é um professor universitário de esquerda "prafrentex", envolvido com causas ambientais. Mas mesmo com tudo isso, Sheila está profundamente infeliz e com raiva de si mesma.

O mote de Physical, série do Apple TV+, poderia ser definido assim, mas a verdade é que ela é muito mais do que isso. Isto porque a dramédia (mistura de drama com comédia) se centra na história de uma ótima personagem. Sheila (encarnada com braveza por Rose Byrne, de Damages) é uma figura bastante marcante e controversa, que inspira simultaneamente empatia, mas também irritação.

Sheila, para além de sua vida como dona de casa sem muito o que fazer, é uma mulher bulímica que extravasa suas frustrações em uma espécie de ritual: ela aluga quartos de motéis baratos e faz orgias gastronômicas com muita fast food – que são, obviamente, devidamente vomitados depois. É só assim que Sheila consegue escapar da sua frustração cotidiana com seu corpo e com seu casamento ruim. Dessa forma também ela parece estar consumindo as economias da família.

Ou pelo menos era assim, até ela descobrir uma nova paixão: a ginástica, que foi uma febre mundial nos anos 1980. O exercício faz com que Sheila Rubin aos poucos se torne uma empreendedora, que começa a se aventurar no mercado de vídeos para ginástica que adentravam os videocassetes das casas de mulheres nesta década, sendo como precursores das academias de ginástica.

Os monólogos interiores de Sheila

(Fonte: Apple TV)(Fonte: Apple TV)Fonte:  Apple TV 

Todos estes aspectos são pratos cheios para os fãs da nostalgia desta década (os que curtem, por exemplo, Stranger Things e Todo Mundo Odeia o Chris). Mas a grande novidade da trama de Physical, na verdade, está em outro aspecto: a forma com que a voz de Sheila é retratada, em um ângulo narrativo bastante inusitado.

Sheila, conforme já dito, é uma dona de casa que parece estar explodindo por dentro, embora sua vida pareça (externamente) ser perfeita. Até aí, nenhuma novidade: em Desesperate Housewives, vemos exatamente o mesmo mote. Mas a diferença aqui é que Physical é narrada em off pelos monólogos interiores que Sheila mantém, e que deixam claro que toda a fachada que ela sustenta frente às pessoas em sua frente – como o marido, o chato Danny (Rory Scovel) ou a vizinha Greta (Deirdre Friel) – é sempre falsa, pois por dentro, ela está sempre raivosa.

É por essa voz que sabemos também que Sheila se odeia. Ela está constantemente se xingando de feia, gorda, burra, inútil (o que pode fazer com que muitas mulheres, infelizmente, se identifiquem com este padrão comportamental). Este ódio vai além da relação com o corpo, e revela uma profunda incapacidade de ser generosa consigo mesma.

É um recurso sofisticado, que nos faz lembrar dos solilóquios típicos do teatro, e nos traz a oportunidade de acompanhar a vida interior de uma mulher insatisfeita. O fato é que essa voz nos dá acesso à mente algo doentia de Sheila Rubin, que parece sempre disposta a tomar más decisões. Embora ela saiba que está se enganando (ou seja, que não está encarando de frente a infelicidade que sente), Sheila consegue bastante capaz de cair cada vez mais.

A dona de casa, pelo que vemos ao longo dos episódios, está muito próxima de personagens femininas problemáticas, como a enfermeira Jackie, de Nurse Jackie. É fácil sentir raiva de personagens mentirosas, que parecem fadadas à autodestruição, tal como Sheila e Jackie. Mas também é possível se colocar no lugar delas e notar que não somos tão diferentes assim.

Evolução entre as temporadas

(Fonte: Apple TV+)(Fonte: Apple TV+)Fonte:  Apple TV 

Atualmente na segunda temporada, Physical encara os desafios de dar continuidade a uma primeira que terminou no clímax. Sheila, aparentemente, parecia finalmente propensa a dar vazão a algum tipo de emoção para além do uso do recurso da bulimia (não falarei aqui mais para evitar os spoilers).

Na temporada de 2022, Sheila ganha mais complexidade, assim como os personagens que estão à sua volta – muitos, inclusive, bem marcantes e bem construídos. O casal de ripongos Bunny (Della Saba) e Tyler (Lou Taylor Pucci) perdeu um pouco do espaço que tinha na trama, mas se envolve em uma tramoia um tanto cômica: eles ameaçam revelar a todos que Sheila tem um caso com o poderoso empresário John Breem (Paul Sparks, de House of Cards), um pai de família mórmon também incrivelmente insatisfeito com sua vida.

Danny, o marido de Sheila, deixa de ser apenas o pateta pedante da primeira temporada e começa a se esforçar para ser um esposo melhor – o que até traz alguma possível empatia com este personagem que, incialmente, parece capaz apenas de suscitar a raiva na audiência. Já Greta e seu marido encontram um caminho mais viável para a felicidade conjugal quando ela resolve se abrir às fantasias sexuais do marido.

Mas, por fim, a grande novidade da temporada dois é a chegada de um personagem marcante: Vinnie Green, um verdadeiro mago da ginástica na TV. O personagem é vivido com energia exacerbada pelo competente Murray Bartlett (que já havia brilhado antes como o gerente do resort em The White Lotus). Vinnie parece ser exatamente aquilo que Sheila almeja para si: ele conseguiu construir um império dos negócios vendendo estilo de vida saudável e ajudando mulheres a resgatar a autoestima a partir da ginástica.

Tudo isto, claro, tem um tanto de aparência, mas a graça aqui é ver Sheila se confrontando com uma espécie de espelho masculino, que evidencia a ela tudo que ainda pode ser caso se  se dedique de fato ao mercado da ginástica. A dinâmica entre Rose Byrne e Bartlett é uma das grandes atrações desta temporada. Juntos, eles aparecem (literalmente) em uma dança em que ambas as performances se retroalimentam de maneira muito divertida.

Ao trazer mais nuances à dramédia, a temporada dois de Physical nutre expectativa para que uma nova série de episódios seja lançada pelo Apple TV+ – o que ainda não foi confirmado pela plataforma de streaming. Se não acontecer, certamente sentiremos falta da problemática Sheila Rubin.

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