O anúncio de que a Microsoft vai lançar uma versão do Xbox One sem o Kinect deixou muita gente empolgada. Nas notícias que seguiram a revelação, não era difícil ver fãs comemorando a novidade — alguns de maneira bem acalorada, inclusive. E a razão para isso é simples: sem o acessório, o console chega às lojas custando US$ 100 a menos que o valor cobrado inicial, se igualando aos US$ 399 do PlayStation 4.
Diante disso, não é difícil entender por que tanta gente viu a remoção do sensor do kit básico como uma vitória. Afinal, o One ainda possui pouquíssimos jogos que realmente utilizam o periférico de maneira interessante e, até agora, ele funcionava mais como um extra do que como algo realmente relevante para a plataforma.
No entanto, a decisão foi realmente acertada? É claro que, à primeira vista, tudo parece ótimo e maravilhoso, mas não é preciso ser um grande analista de mercado para perceber os impactos causados pela mudança de posicionamento da Microsoft em relação ao One. Lançar esse novo modelo foi a melhor coisa a ser feita ou uma decisão precipitada que pode trazer consequências muito maiores — e não tão boas assim — em um futuro não tão distante?
Um console mais competitivo
Independente de sua opinião sobre o anúncio, uma coisa é certa: o novo Xbox One vai vender muito bem. Muito. Se o console já estava sendo muito bem aceito pelo público custando US$ 499, chega a ser óbvio que a versão mais barata vai se tornar ainda mais popular, ajudando a expandir a base de usuários da Microsoft significativamente.
Como a ideia da empresa é exatamente tornar seu sistema mais competitivo para bater de frente com o PS4, é natural que uma “queda de preço” é o incentivo que faltava para atrair o consumidor, principalmente aquele que não dá a mínima para o Kinect e quer apenas jogar seu Call of Duty e seu Battlefield com os amigos na nova geração.
Sob esse ponto de vista, a decisão da Microsoft não poderia ser mais acertada. Tanto que já há alguns analistas de mercado vendo que a disputa entre os dois principais sistemas vai se tornar ainda mais acirrada a ponto de termos uma reviravolta nos próximos anos. De acordo com o IDC, a nova situação do One deve fazê-lo superar o PlayStation 4 em números de vendas em vários países, incluindo os Estados Unidos, já em 2015.
E o Brasil deve ser um desses territórios em que o Kinect “pelado” deve ganhar força, principalmente por conta de seu preço. Atualmente, o Xbox One completo custa R$ 2.300 em lojas oficiais e a versão sem a câmera chegará às lojas por R$ 2.000 — ou seja, metade do valor cobrado pela Sony com o PS4.
Só que, como muita gente apontou nos comentários, não é difícil encontrar os consoles sendo vendidos bem mais barato que isso. Em muitas lojas, o One completo já custa R$ 1.800, o que pode significar que o novo modelo pode chegar a um preço muito mais acessível, alavancando sua base de usuários por aqui — uma reprise do fenômeno que tínhamos na geração passada.
Sem samaritanos
Só que, por mais que todo mundo goste de preços baixos e de ver aquele produto tão desejado ficar mais barato, não podemos nos enganar. É claro que um One mais em conta é ótimo, mas a que preço? De nada adianta a Microsoft abrir mão de alguns recursos para popularizar seu console se, para isso, ela sacrificar pontos importantes para o futuro da plataforma. E o primeiro passo para compreender isso é deixar de acreditar que estão sendo legais com você.
Entenda: em uma indústria tão lucrativa quanto a de jogos, não existe gente boa. Não há uma companhia samaritana que pensa no bem de seus consumidores e no quanto eles ficarão felizes com suas novidades. O que existe é a oportunidade de usar essa empolgação para fazê-lo se sentir importante. É o mais belo e puro marketing.
Quando a Sony “ouviu” os apelos dos fãs em relação ao PS4 e não seguiu a Microsoft nas políticas contra jogos usados e exigência de internet, ela não fez porque é amigona da galera ou porque o Jack Tretton é um anjo que desceu dos céus para salvar os jogadores. Aquilo foi usar a péssima recepção causada pelos anúncios do One em benefício próprio. Foi se vender em cima do tropeço do outro. Uma sacada inteligente, mas longe de ser altruísta.
E a dispensa do Kinect segue a mesma linha. O anúncio do Xbox One pelado não significa que a empresa “finalmente ouviu os consumidores”, como muita gente bradou nos comentários. O que ela fez foi uma resposta às vendas do PS4.
Se um dos principais responsáveis pelo sucesso da concorrência é o preço, a solução mais óbvia é igualar. E, no caso da Microsoft, era exatamente o Kinect que fazia o console ser mais caro, então retirá-lo do pacote é a saída lógica — principalmente enquanto não há jogos que utilizem o acessório.
Assim, a chegada do novo One não é uma forma de agradar os fãs, já que os clientes fiéis já têm o aparelho. A novidade foi, na verdade, uma tentativa desesperada de ultrapassar a Sony.
Só que é ao abrir mão do sensor que começamos a ver o quanto a empresa pode ter se precipitado.
Adeus, diferencial
Goste você ou não, o Kinect era o grande diferencial do Xbox One. Quando a Microsoft anunciou o console, em maio de 2013, a nova versão do acessório foi apresentada como parte fundamental de toda a estrutura do sistema. Nas palavras da própria companhia, ele seria o “coração da experiência integrada desta nova geração”.
Era o Kinect que tornava o console único, diferenciando-o de tudo aquilo que tínhamos no mercado. Em minha análise, comento exatamente sobre o quanto o upgrade recebido pelo periférico em termos de reconhecimento de voz e na precisão dos movimentos fez com que o One se tornasse uma plataforma muito mais completa — por mais que ele não tivesse uma utilidade tão significativa em jogos.
O problema é que, ao lançar um Xbox pelado, a Microsoft simplesmente ignora tudo isso. É como se ela dissesse para o mercado e para os consumidores que tudo aquilo que ela fez nesse sentido não era importante. Trata-se de um enorme passo para trás, pois é ignorar aquilo que ela mesma sempre destacou como sendo a essência do console: a integração.
Esse retrocesso é bastante perigoso. O Xbox One nunca foi vendido como uma supermáquina, mas como um dispositivo ultraconectado, sendo que o Kinect era o que unia essas diferentes propostas. Ele sempre foi uma console menos potente, mas possuía outros atrativos que faziam dele uma escolha tão interessante quanto a concorrência. Só que, sem o sensor, a Microsoft passa a tratar o console como um video game qualquer.
E, ao ignorar o Kinect, a empresa mostra que não tem colhões para apostar em uma tecnologia exclusiva e inovadora. Repetindo o mesmo erro da geração passada, ela simplesmente deixou de apoiar o periférico porque ele exige mais esforços de desenvolvimento. Nesse ponto, ela ficou atrás da Nintendo, que se revelou muito mais corajosa e encarou as consequências de ter adotado o GamePad — mas sem abandoná-lo.
Como confiar?
Outro ponto bastante preocupante com o anúncio do Xbox One pelado é a quebra de confiança de todo o mercado em relação à Microsoft. Afinal, como continuar acreditando na empresa depois de tantas reviravoltas?
A dissociação do Kinect da experiência “básica” do console — por mais que a empresa diga que não é isso que vai acontecer — é apenas mais um capítulo da controversa história do One. O sistema foi anunciado há menos de um ano e praticamente tudo o que foi mostrado naquele dia 21 de maio de 2013 foi desfeito. Tudo bem que algumas políticas eram realmente equivocadas, mas outras não precisavam ser aposentadas. É o caso do periférico.
Ao negar essas propostas e voltar atrás tantas vezes, a Microsoft passa a impressão que ela não tem ideia do que está fazendo. Ela tinha um planejamento que, apesar de polêmico, era bem construído e mostrava muito bem a visão da companhia para esta geração. Só que ela foi aos poucos descartando cada uma dessas propostas, nos deixando com aquela sensação de que nem mesmo ela sabe o que esperar do Xbox One nos próximos anos.
Isso gera uma terrível falta de confiança tanto por parte dos consumidores que acreditaram e compraram o console por conta do diferencial apresentado quanto dos desenvolvedores que apostaram no console.
E os estúdios já começaram a se expressar quanto à novidade. O responsável pela série Zumba Fitness, por exemplo, disse que essa decisão vai dificultar a vida de quem sonhava em usar o sensor em jogos originais, uma vez que ele deve se limitar apenas a títulos licenciados e musicais — ou seja, o mesmo tropeço da geração passada.
A situação fica mais delicada quando olhamos para estúdios que realmente acreditaram nas promessas iniciais da Microsoft. Muitos funcionários da Harmonix demonstraram insatisfação ao ver que a empresa colocou o Kinect de lado. Como o periférico era a base de Fantasia: Music Evolved, eles foram os que mais sentiram o impacto, já que os títulos que exigem a peça para funcionar serão os primeiros a sentir o impacto.
É claro que não serão todas as produtoras que vão se sentir prejudicadas assim. Várias não vão dar a mínima pela falta de suporte ao periférico e outras vão comemorar o ganho de processamento que a Microsoft prometeu, mas é inegável que essa reviravolta pode abalar a confiança existente entre a fabricante e as demais empresas.
Isso sem falar que essa história de melhorar o desempenho do One agora que ele não depende mais do Kinect é tratar o dispositivo como um parasita. É mostrar que ele não é apenas desnecessário, como dizer que ele está limitando o verdadeiro potencial do console.
Isso é sinônimo de fracasso?
Diante disso tudo, não é difícil entender por que a decisão de lançar o Xbox One sem o Kinect é arriscada e, de certo modo, pouco inteligente. É jogar todo o diferencial do console no ralo para tentar se igualar ao PS4. Mais do que isso, é assumir que o sistema concorrente é melhor que o seu e que você quer ser como ele, por mais que você tenha algo único nas mãos.
E isso quer dizer que o One vai fracassar? Muito pelo contrário. É bem provável que o console venda horrores agora que ele está mais barato, principalmente logo após seu lançamento. O anúncio vai ser ótimo para as vendas, que parecem ser a maior preocupação da Microsoft. Nesse sentido, ela fez mandou muito bem.
O problema é que o preço para isso, ela optou por abrir mão de toda a inovação e do potencial que o Kinect tinha a oferecer para esta geração. Uma pena.