A Steam, maior plataforma de jogos do PC, recebe cerca de 200 lançamentos semanalmente. Destacar-se neste mar de oferta não é uma tarefa simples, mas um título brasileiro chamou minha atenção em novembro por trazer uma proposta diferente: além de ser um game, o projeto também é uma homenagem a um amigo falecido.
Master Lemon: The Quest for Iceland não nasceu como um projeto qualquer. Ele veio de um luto, de uma madrugada insone e de uma amizade tão profunda que atravessou até o processo de game design. Desenvolvido pelo estúdio brasileiro Pepita Digital, o jogo usa pixel art, linguagem e viagem para falar sobre algo muito mais íntimo: preservar memórias — e um amigo.
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A aventura é ambientada na Islândia e coloca o jogador ao lado do protagonista Limão para enfrentar uma praga devoradora de lembranças, numa metáfora que dialoga diretamente com a dor de perder alguém que marcou a vida. Essa é a estreia da Pepita Digital no mundo dos games, um passo ousado para um estúdio que nasceu do audiovisual e que hoje funciona como um laboratório criativo de apenas cinco pessoas.
Mas, acima de tudo, Master Lemon é uma homenagem a André Lima, amigo de longa data do fundador Julio Santi, que faleceu em 2016. Do luto veio o primeiro rascunho — escrito de madrugada, em uma única página — que acabaria moldando um projeto de cinco anos.
O Voxel conversou com Julio para entender como um tributo íntimo se transformou em um jogo sobre amizade, aprendizado e o poder das palavras. O criador do projeto deixa claro que Master Lemon é menos um produto e mais um gesto — um convite para refletir sobre o que levamos conosco, e o que escolhemos não esquecer.
Um estúdio pequeno com ambições grandes
Apesar de a Pepita Digital estar estreando nos games, o estúdio já traz uma longa bagagem no audiovisual. Julio explica que a equipe atual soma cinco pessoas, divididas entre administração, arte, conteúdo e programação. A empresa também atua com VR e vídeos corporativos, mas carrega uma missão que guia tudo que produz: “despertar o potencial humano em cada um”.
A trajetória do fundador ajuda a explicar o resultado de Master Lemon. Formado em Letras, com mestrado em Literatura, ator e dramaturgo, Julio escreveu duas peças, fez cinema e chegou a lançar um filme produzido pela MGM (“O Caseiro”). A Pepita nasceu quase por acaso, fruto da necessidade financeira e da habilidade com câmera e edição — e acabou crescendo mais do que ele esperava.
Mas foi justamente a dificuldade em seguir produzindo cinema no Brasil que empurrou Julio para os games. Ele buscava um espaço criativo mais acessível, onde não precisasse disputar salas de cinema e slots de streaming. “A distribuição de jogos também é um desafio enorme — descobri isso depois — mas ainda me pareceu um caminho mais viável”, conta.
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Master Lemon é o primeiro game da Pepita, mas a experiência do cinema acompanhou o desenvolvimento desde o início. Julio chegou ao projeto com expertise em narrativa, produção e direção — mas confessa que o game design foi um mundo completamente novo. “Demorou muito para entender o que era, tive uma curva de aprendizado intensa”, relata.
O processo, no entanto, acabou moldando a própria identidade do jogo. Ao remover sistemas de combate e trazer foco para palavras, culturas e quebra-cabeças baseados em linguagem, Julio encontrou uma maneira de unir suas paixões: mundos ficcionais, aprendizado e conexões humanas.
A madrugada em que tudo começou
A ideia de Master Lemon nasceu em 2018, dois anos após a morte de André Lima. Julio acordou com o nome do jogo na cabeça — Master Lemon: The Quest for Iceland — e escreveu uma página inteira no Word antes que a inspiração evaporasse.
Nos anos seguintes, reuniu artistas, buscou referências e esboçou o mundo das Ilhas Bashires. Mas só em 2020, com a chegada do produtor executivo Thomas Leme, o projeto ganhou um ritmo concreto. A produção começou oficialmente em 2021 e deveria durar pouco mais de um ano. “Não sabia que demoraria cinco”, brinca.
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Foi nesse processo que Julio criou coragem para procurar os pais de André e torná-los parte oficial do projeto. O jogo deixou de ser “livremente inspirado” e assumiu o nome, o coração e o propósito da homenagem.
A amizade que virou jogo
Julio fala de André como quem ainda conversa com um amigo que partiu cedo demais. Os dois se conheceram por um amigo em comum — e se aproximaram por causa de línguas. Literalmente. André, poliglota, apresentou o método Assimil, que transformou não apenas a forma como Julio estudava, mas como encarava o mundo.
“Aprender sozinho é sobre liberdade. É descobrir que você é capaz de aprender qualquer coisa, no seu tempo”, diz. As conversas entre os dois orbitavam filosofia chinesa, curiosidade e a ideia de que viver é aprender — e esse espírito se tornou o DNA do jogo.
Master Lemon, então, não é um memorial estático. É um percurso. Uma jornada sobre descobrir o mundo, absorver culturas e, acima de tudo, valorizar as palavras que nos conectam. Essa experiência foi traduzida para o gameplay do título, que consegue transformar a busca por palavras em jogabilidade.
Transformando luto em gameplay
A tarefa de transformar uma história real e cheia de emoção em um jogo não foi fácil: Julio conta que teve que reescrever a história dezenas de vezes. Às vezes por conflito criativo; às vezes por sentir que a narrativa ainda não expressava o suficiente. “Estou descobrindo o quão pessoal o jogo é só agora que lancei”, admite.
Os feedbacks têm sido emocionantes — e intensos. Um jogador da Bélgica, o primeiro a platinar o game no PlayStation, escreveu uma mensagem que fez Julio chorar. “Percebi que o jogo está conversando com as pessoas. É um grande alívio.”
Mas o processo não foi fácil. “Quando lançou, me senti um nervo exposto.” Falar sobre dor, memória e amizade exige coragem — e ele deixa claro que foram cinco anos de revisões, dúvidas e vulnerabilidade.

Enquanto a narrativa está carregada de emoção e lida com o luto, que é um tema bem pesado, o visual do jogo é leve – e isso não é por acaso. Julio queria contraste, e o visual em pixel art trouxe um lirismo nostálgico capaz de acolher temas pesados sem perder a beleza.
“A gente precisa encontrar beleza nessa história”, diz. Ele menciona yūgen, palavra japonesa para nomear aquilo que é profundamente doloroso e, ainda assim, belo. A estética lúdica das ilhas e personagens ajuda a equilibrar esse sentimento, criando um mundo onde a dor não desaparece, mas encontra espaço para respirar.
A mensagem que fica
Como falamos aqui na nossa review do jogo, Master Lemon é sobre combater o esquecimento — não apenas dentro da ficção, mas fora dela. É sobre viver apesar do peso. Sobre agir agora, antes que a vida escorra pelas brechas da rotina.
E essa é, justamente, a mensagem que o desenvolvedor queria passar com essa homenagem. “O jogo fala que não importa o preço — a gente precisa viver. E não é amanhã, é agora. Nas pequenas coisas, nas relações, nas não procrastinações”, resume Julio.
Além de trazer uma bela mensagem e homenagem a um grande amigo, Master Lemon também abriu portas para o seu criador explorar o mundo dos games, e possivelmente veremos o nome da Pepita Digital em mais projetos. Além de um projeto que está na “lista de desejos da alma”, Julio conta que já almeja lançar outros jogos, incluindo um projeto em parceria com uma publisher chinesa.
“Preciso terminar esse ciclo para poder falar com clareza como vou abordar os próximos projetos. Primeiro acho que preciso me recompor emocionalmente — primordialmente emocionalmente — porque estou muito abalado, muito duro. Mas sim, tem um projeto muito legal na mente.”
Master Lemon: The Quest for Iceland está disponível para jogar no PC e consoles PlayStation, Xbox e Switch, com uma demo grátis na Steam. E aí, você vai dar uma chance ao jogo? Comente nas redes sociais do Voxel e TecMundo.
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