Expressão cultural e jogos eletrônicos [Coluna]

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“Representatividade” é uma palavra que merecidamente ganhou muito destaque nos últimos anos. É um tema importante para todas as mídias, incluindo jogos eletrônicos, por motivos que já deveriam ser óbvios a essa altura. Entretanto, quando se fala nessa palavra, em geral, o que vem à cabeça de imediato é: representatividade de gênero, de orientação sexual e étnica. Pouco se fala, no contexto de videogames, em representatividade cultural – e é sobre isso que iremos falar hoje.

Guacamelee!Guacamelee!Fonte:  Nintendo 

Um dos metroidvanias mais bem sucedidos da última década foi Guacamelee! . O jogo foi aclamado pela crítica e dois dos pontos mais elogiados foram a sua estética e a sua história, que exaltam a cultura mexicana. Entretanto, os desenvolvedores da Drinkbox Studios são canadenses. Então, podemos fazer a seguinte pergunta: indivíduos de uma determinada cultura são capazes de capturar a essência de um povo com cultura completamente diferente? A resposta é sim, porém é uma tarefa hercúlea.

Estúdios maiores podem eventualmente se dar ao luxo de contratar consultores e até integrá-los ao processo criativo, mas isso não necessariamente facilita o processo. O motivo para isso é que há algo de intangível quando falamos de expressão cultural: não é apenas um conjunto de características e narrativas; envolve ainda uma série de sensibilidades que podem influenciar cada decisão no processo de desenvolvimento. Há elementos que são universais, claro, mas, se o mesmo problema for apresentado a um desenvolvedor canadense e a um desenvolvedor mexicano, são grandes as chances de que as soluções resultantes sejam muito diferentes entre si.

Um bom teste é ver se os jogos sobrevivem a uma análise do povo que está sendo representado, como, por exemplo, o norte-americano Ghost of Tsushima, aclamado pela crítica japonesa. O problema é em casos como Guacamelee!, em que a crítica nativa daquela cultura não tem a mesma projeção internacional que o jogo eventualmente ganhou. O processo para corrigir isso é conceitualmente simples, mas longo, e envolve prestigiar mídias que consigam dar voz a diferentes perspectivas.

Ghost of TsushimaGhost of TsushimaFonte:  PS Store 

Há outra possível situação que devemos considerar no contexto de representatividade cultural. Pode acontecer de, ao tentar emular determinada cultura, os desenvolvedores acabem criando algo único. Assim como no cinema a interpretação italiana dos faroestes americanos deu origem ao que se chama de western spaghetti, temos exemplos de desenvolvedores de jogos eletrônicos que pegaram uma cultura, deram uma nova interpretação e assim criaram um gênero novo. O caso mais notório disso, certamente, são os RPGs japoneses, que nasceram a partir de um novo entendimento das culturas de roleplay e de fantasia medieval. Situações assim dizem mais sobre quem tentou emular do que sobre quem estava sendo emulado, mas ainda assim é uma forma de expressão cultural.

Dragon QuestDragon QuestFonte:  Nintendo 

De qualquer forma, mesmo que seja possível ser bem-sucedido sendo um desenvolvedor tentando representar uma cultura externa, é claro que sempre há a opção de representar a sua própria cultura. Aí a discussão fica ainda mais interessante, e passamos a refletir sobre a própria forma como a mídia tem evoluído.

Durante muito tempo, os modos de produção de jogos eletrônicos ficaram restritos a alguns poucos desenvolvedores de alguns poucos países – Estados Unidos e Japão, principalmente. Mesmo desenvolvedores fora desses países ainda assim cresceram sob a influência desse oligopólio. O resultado disso é que, por mais que o desenvolvimento de games agora seja uma atividade globalizada, ainda não temos identidades regionais bem estabelecidas fora de Estados Unidos e Japão e, mesmo assim, tais identidades não representam todos os povos dentro desses países. Isso é um testemunho tanto da pressão do mercado quanto da tenra idade da mídia. Mas, aos poucos, vemos sinal de mudança.

Never Alone (Kisima Ingitchuna)Never Alone (Kisima Ingitchuna)Fonte:  Site oficial do jogo 

O maior expoente dessa mudança possivelmente é Never Alone (Kisima Ingitchuna). Desenvolvido em parceria com o Conselho Tribal de Cook Inlet (no Alasca) e lançado em 2014, o título usa histórias passadas oralmente na tribo Iñupiaq como pano de fundo – com direito a narração em língua nativa. Ao longo do jogo, é possível desbloquear pequenos documentários em vídeo com depoimentos de membros da tribo e imagens de arquivo mostrando o cotidiano daquele povo. Certamente não é uma abordagem que vai funcionar para todos os games, mas, nesse caso, cumpriu o seu papel e ainda por cima foi bem-sucedido comercialmente.

Outro exemplo de título que exalta a cultura dos seus desenvolvedores, Raji: An Ancient Epic é um jogo desenvolvido pela indiana Nodding Heads Games. O título usa textos sagrados hindus como inspiração para a história e a arte é feita no estilo Pahari.

É raro encontrar, em forma de jogo, expressões genuínas de outras culturas fora do que costumamos ver do eixo Estados Unidos-Japão. Nem sempre tais jogos têm o mesmo polimento a que estamos acostumados, mas isso não os torna menos interessantes. Estamos vendo de camarote o nascimento de identidades regionais e isso é absolutamente fascinante.

Raji: An Ancient EpicRaji: An Ancient EpicFonte:  Nintendo 

Vamos recapitular. Há três configurações possíveis que precisamos considerar para o debate de representatividade cultural:

  • Interpretações fiéis (ou tão fiéis quanto possível) feitas por quem não cresceu na cultura abordada.
  • Novas interpretações de temas até então restritos a poucas culturas, feitas por quem não cresceu em torno dessas culturas.
  • Interpretações fiéis criadas por quem de fato tem vivência na cultura abordada.

O primeiro tipo tem seu valor, ainda mais como peça de divulgação, mas idealmente precisa passar pelo crivo de quem cresceu em torno da cultura abordada. O segundo tipo pode render resultados interessantes, criando novos gêneros e revelando lados escondidos de quem está desenvolvendo. O terceiro é raro fora do que costumamos ver de Estados Unidos e Japão, mas é extremamente importante e precisa ser cultivado.

Não se trata de apenas educar enquanto entretém ou de fazer algo para que mais povos se identifiquem: assim como qualquer outra Arte, os jogos eletrônicos como um todo ganham quando se abrem para novas perspectivas, mesmo que de forma indireta; e a forma mais fácil de contribuir para isso é manter o debate vivo.

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