Entrevista: conversamos com Marília Pasculli, curadora da mostra Play!

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(Fonte da imagem: Vice)

Um festival que busca fazer uso das novas tecnologias para elaborar obras de arte interativas e que incentivam a discussão sobre temas recorrentes dos grandes centros urbanos. É esse o conceito do SP Urban Digital Festival, evento produzido pelo Verve Cultural sob curadoria da artista brasileira Marília Pasculli e que terá sua segunda edição em novembro deste ano.

A mostra Play!, a qual já comentamos em matéria anterior, é de fato a intervenção mais famosa participante de tal festival. Junto com os outros espetáculos do SP Urban, o objetivo principal da Verve Cultural neste ano é discutir o conceito de “Cidadão Digital”, questionando como as novas tecnologias impactam em nosso cotidiano e como nossas relações sociais estão sendo modificadas enquanto vivemos em um mundo cada vez mais computadorizado.

Por mais que não paremos para pensar sobre isso, a dimensão digital de nossa sociedade já onipresente afeta constantemente a nossa vida – há exemplos práticos para tratar sobre esse assunto. Redes sociais, serviços de comunicação global, fóruns online de debates políticos e plataformas de participação governamental são coisas cada vez mais comuns e das quais fazemos uso constantemente para resolver questões importantes relacionadas ao nosso próprio cenário urbano.

(Fonte da imagem: SP_Urban)

Um papo sobre games, arte interativa e cultura brasileira

Mesmo ocupada com as atividades da segunda edição da mostra Play!, Pasculli conseguiu arranjar um tempinho para conversar com nossa equipe sobre a intervenção e outros trabalhos realizados pela Verve Cultural.

Tec/BJ: O objetivo da mostra Play! é disseminar o fato de que jogos eletrônicos, tais como novas formas de arte digital, também podem atuar como peças culturais e obras lúdicas, propondo reflexões sobre assuntos de grande importância social e incentivando a troca de experiências ou ideias a nível internacional. Também podemos considerá-los, assim, como um legítimo meio de comunicação subjetivo.

Contudo, os games ainda são vistos como um “entretenimento infantil” por muitas pessoas – inclusive figuras públicas e órgãos governamentais. Quais são as principais dificuldades enfrentadas na hora de espalhar esse conceito de “games como arte” para as pessoas? Como vocês pretendem quebrar os velhos paradigmas que permeiam o mundo dos video games, que ainda sofre muito preconceito especialmente na sociedade brasileira?

Marília: De fato, ainda existe muita resistência em aceitar o valor cultural da Game Arte por falta de comunicação e de divulgação sobre o tema. Para disseminar e esclarecer sua importância, nada mais eficaz que aproximar o público a uma experiência pessoal com esse tipo de arte.

Muitos dos participantes da mostra nunca foram a um museu, nem mesmo sabem da existência da Game Arte, mas têm domínio com equipamentos eletrônicos e smartphones, conhecem a linguagem. Os participantes, que em sua maioria são adolescentes e adultos, saem da mostra com uma sensação bacana, se sentem cocriadores da obra, pois é o jogador que determina grande parte do ato criativo.

A interatividade aproxima o participante com a obra e também com o ambiente ao seu redor. Ele percebe o quanto sua ação influencia no conteúdo da fachada, transformando o aspecto visual do edifício. Estabelece uma forte relação pessoal e de comunicação não somente com obra em questão mas com todo o cenário urbano. Desse modo, captamos o interesse do participante. Além das monitoras, disponibilizamos informação impressa, contextualizando e fornecendo informação esclarecedora sobre a Game Arte.

(Fonte da imagem: Vice)

Tec/BJ: Todas as obras da mostra Play! são apresentadas na forma de games simples e divertidos, mas carregam simbolismos interessantes e que sugerem um debate criativo sobre questões urbanas que conhecemos bem: o trânsito nas grandes metrópoles, os altos índices de atropelamentos, a diversidade social paulistana etc. Olhando para o mercado de games, podemos ver que é crescente o número de títulos (geralmente independentes) que também fazem uso dessa estratégia, tais como RIOT (que desafia o jogador a gerenciar um grupo de manifestantes) e Papers, Please (que debate questões políticas colocando você na fronteira de um país socialista e ultranacionalista).

Qual é a sua opinião sobre esse fenômeno? O que incentiva cada vez mais desenvolvedores a focarem nesse estilo de jogos, e que incentivo falta para que eles tenham mais atenção do que títulos comerciais blockbusters – ou seja, feitos exclusivamente para gerar lucro e sem maiores motivações profundas?

Marília: Acredito que seja um processo natural do jogador querer ter mais participação e poder de decisão no desenvolvimento dos jogos. Hoje, com a democratização de ferramentas de programação, cada vez mais percebe-se programadores interessados em criar seus próprios jogos com cenários e temáticas próximas de sua realidade, utilizando o game como forma de expressão na tentativa de potencializar a transformação social.

Os games são mais acessados através de dispositivos móveis, por tablets e smartphones, ou seja, nos mais variados locais e isso certamente influencia o desejo do jogador de incluir o ambiente ao redor num contexto de games, aproximá-lo de sua realidade. Prova disso é a aparição cada vez mais significativa dos indie games. No entanto, a indústria dos games é a de maior crescimento no mundo – a receita deste ano no Brasil foi de 1,4 bilhão de dólares, com estimativa de aumentar 74% durante o próximo ano.

(Fonte da imagem: FIESP)

Com uma força econômica desse porte, é muito difícil que os games independentes com caráter social tenham mais atenção que os games da indústria. O desafio está em provocar o interesse dos consumidos pela temática, criatividade e ineditismo. O desafio já é um grande incentivo para os programadores, a busca pelo reconhecimento e disseminação de sua obra mesmo com a presença da poderosa indústria dos games.

A mostra Play! lançou esse desafio para os artistas; se futuramente o jogo estivesse na mão do usuário e não da indústria dos jogos, então poderíamos perguntar: qual seria o potencial desses jogos como um instrumento de transformação cultural? Se voltarmos à questão sobre o potencial do jogo, antes mesmo da comercialização das regras e da dissolvição dos pixels em uma tentativa de desfocar nossa capacidade de enxergar através de suas políticas, como poderíamos reinventar o jogo e as regras?

(Fonte da imagem: Vice)

Tec/BJ: Os jogos eletrônicos, como todas as outras manifestações artísticas, têm o poder de transmitir o cenário social de determinada sociedade para outra de maneira lúdica e interativa. Quando o estúdio desenvolvedor de certo país desenvolve um título, ele geralmente adota preceitos próprios de sua cultura, embutindo elementos, costumes e ideais no enredo e na parte audiovisual do jogo. E é por isso que podemos ver uma série de games falando sobre eventos históricos dos Estados Unidos, por exemplo, ou colocando esta mesma nação na posição de “herói mundial” em situações de conflito.

O Brasil, contudo, ainda não se firmou como produtor de games. Poucos títulos são desenvolvidos por aqui, e aqueles que são e que carregam preceitos culturais de nosso país (como Capoeira Legends, lançado em 2009) não são valorizados sequer pelos próprios brasileiros. Na sua opinião, como podemos melhorar esse cenário desanimador e transformar o Brasil, que tem potencial para isso, em um grande mercado produtor de games? Faltam apenas incentivos governamentais ou trata-se de um problema mais profundo?

Marília: O Brasil fatura bilhões de dólares com indústria dos games, talvez a contradição seja em seguir um modelo de produção, linguagem e temática internacionalizada, não produzir significantemente games que retratem a cultura brasileira. Acredito que falta interesse do consumidor por uma temática nacionalista, certamente um problema que esbarra em muitos outras questões sociais.

(Fonte da imagem: Donsoft Entertainment)

Tec/BJ: As mostras do Verve Cultural participam da iniciativa internacional Connecting Cities, que visa construir uma infraestrutura conectada de intervenções artísticas em espaços públicos usando novas tecnologias. Em 2014, o tema é “Participatory City” (Cidade Participatória), que busca colocar o cidadão comum em um papel importante dentro dos projetos urbanos de sua cidade e fazendo-o participar ativamente das peças artísticas.

Qual a importância desse tipo de intervenção pública e como ele pode impactar na vida dos cidadãos brasileiros, em termos de percepção da arte e de questões ligadas à sua própria cidade? Qual são as dificuldades de se fazer esse tipo de intervenção?

Marília: Percebemos com as mostras já realizadas e em debate com os curadores do Connecting Cities que existem pelo menos três principais potencialidades socioculturais na arte digital em espaços públicos: relacionar os bairros com os cidadãos, construir coletivamente um conceito de comunidade e de perceber, visualizar a cidade como um organismo vivo.

É muito importante usar esse tipo de intervenção pública para dar voz à população. A arte permite estreitar essa comunicação ao usar métodos mais intuitivos e visualmente mais interessantes para tratar de questões sociais importantes. Um exemplo mais claro disso é a obra “Smart Citizen Sentiment Dashboard” (ou “Painel Sentimental do Cidadão Inteligente”) das artistas Nina Valkanova e Motitz Berhens, produzida pela Verve Cultural para a mostra Vivacidade (em setembro de 2013).

(Fonte da imagem: Inker)

A instalação permitia que os cidadãos se expressassem sobre os desafios e as questões urgentes de São Paulo. Através de pesquisas de diferentes grupos de paulistanos, os artistas detectaram cinco temas: segurança, transporte, moradia, meio ambiente e lazer. Usando o bilhete único como interface, os participantes informavam se estavam satisfeitos, indiferentes ou insatisfeitos sobre essas questões. Todas as informações eram traduzidas em tempo real em formas coloridas, símbolos e gráficos animados na fachada.

Acredito que a maior dificuldade é reunir no projeto uma série de fatores propícios, tais como coerência na questão social abordada com o local a ser exibido, interface e interpretação intuitiva, estética interessante atrativa e compatível com o suporte etc.

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A mostra Play! acontece até o dia 4 de maio na Galeria de Arte Digital do Serviço Social da Indústria de São Paulo (SESI-SP), prédio que ocupa o número 1313 da Avenida Paulista. As obras interativas são abertas ao público das 20h às 22h, mas as vinhetas audiovisuais são exibidas durante toda a noite, sendo desligadas somente às 6h da manhã.

Por outro lado, o SP Urban ocorrerá entre os dias 4 e 28 de novembro, contando com trabalhos brasileiros, estadunidenses, japoneses e europeus. Contudo, caso você seja um artista interessado em mostrar seu talento para criar artes tecnológicas, saiba que ainda é possível submeter seu projeto através do site oficial do evento; se ele for aprovado pela curadoria da Verve Cultural, fará parte de uma das feiras culturais mais inovadoras do planeta. Vale a pena conferir.

Via BJ

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