Maid: série acerta ao abordar as diferentes faces da violência (crítica)

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Imagem: Netflix

O que configura um relacionamento como abusivo? Ora, como sabe todo mundo que já viveu um, relacionamentos são sempre complexos: é difícil, para quem está dentro deles, saber o que está de fato acontecendo. Então como é possível categorizar quais relacionamentos ultrapassaram a medida do que é saudável e se tornaram prejudiciais aos sujeitos que estão neles?

A série Maid, sucesso da Netflix, parte dessa premissa inicial: durante uma madrugada, Alex (vivida pela excelente Margaret Qualley) foge de casa com a filha de 2 anos. Ela escapa do relacionamento que vive com o namorado, pai da criança, que é alcoólatra e está se tornando a cada dia mais agressivo. Mas, para conseguir se separar, Alex se dá conta que não tem nada a seu favor: trabalho, pais acolhedores, amigas em quem se apoiar. Acaba indo parar em um serviço de assistência social destinado a mulheres vítimas de violência.

Ao ser indagada pela assistente social, Alex é categórica: ela não sofre violência, por isso, não pode denunciar o namorado – o que possibilitaria que se candidatasse a certos programas de apoio do governo. Maid começa, então, com esse baque inicial, que é a dificuldade que muitas mulheres (e homens também) têm de reconhecer as diversas faces da violência. Afinal, segundo crê Alex, ela não apanhou – o namorado “apenas” bebeu, foi grosso e quebrou um copo na parede.

Frente a essa constatação, Alex precisa enfrentar um verdadeiro calvário em busca de sua salvação e de sua filha Maddie. Tudo parece conspirar contra ela. Sem formação, não consegue empregos que paguem bem e forneçam sustento para as duas. Seu pai é afastado e sua mãe, Paula (papel de Andie McDowell, estrela das comédias românticas nos anos 90 e mãe, na vida real, de Margaret Qualley), é bipolar. O que lhe resta é tentar uma moradia gratuita para vítimas de violência. Para ter direito a esse local, começa a trabalhar como diarista em uma empresa chamada Value Maids, que apoia mulheres nesta situação.

A história contada em Maid é a de uma espécie de via crucis de uma mulher que sofre e busca, com todas as forças que lhe resta, sobreviver sem voltar atrás (o que seria, nesse caso, reatar com o namorado instável, que é o mais próximo de um porto seguro que ela tem). Mas a grande riqueza de Maid é que a série é muito mais do que isso. É um tratado complexo sobre as dinâmicas dos relacionamentos abusivos, sobre a capacidade de resiliência que vive em nós e, por que não, da força incalculável do amor de uma mãe por uma filha.

Estrelas de Maid, Andie McDowell e Margaret Qualley são mãe e filha na vida real.Estrelas de Maid, Andie McDowell e Margaret Qualley são mãe e filha na vida real.Fonte:  Netflix 

Quando menciono que Maid funciona como um tratado, abordo aqui que as nuances trazidas na série são bem mais complexas do que boa parte dos relatos que temos sobre relações tóxicas – seja na ficção, seja no jornalismo. Com isso, aponto a um dos trunfos do roteiro de Maid: todos os personagens que cercam Alex (e que, por isso, são também responsáveis pelos sufocos que ela enfrenta) são tridimensionais e não podem ser reduzidos a estereótipos.

Por exemplo: o namorado abusivo, Sean (Nick Robinson, da série Love, Victor) é um jovem bartender metidinho a galã que bebe além da conta. Ele e Alex se apaixonaram e foram criar uma vida juntos, um tanto precária, mas doce. Aos poucos, Sean começa a culpá-la sobre seus próprios fracassos – chega, por exemplo, a dizer que ela estragou sua vida quando engravidou. O personagem é, em tantos aspectos, detestável. No entanto, ficamos também sabendo que seus comportamentos nocivos não surgem do nada, pois ele mesmo é vítima de pais abusivos. Por isso mesmo, mudar vai além de uma mera decisão, pois há mais forças agindo sobre ele do que seu consciente consegue identificar.

Outros personagens são igualmente complexos. Paula, a mãe de Alex (que a define, em certo episódio, como “meu problema para sempre”) é uma mulher difícil. Sua instabilidade, oscilando entre o afeto e a agressividade, revela o sofrimento causado por uma doença mental, o transtorno bipolar. Por isso, é injusto classificá-la simplesmente como tóxica (numa sutileza importante do roteiro, em certos momentos em que Alex passa perrengues com a mãe, é justamente Sean, o namorado abusivo, que irá acudi-la e apoiá-la).

Há ainda espaço para muitos outros personagens, mas gostaria de destacar um não tão importante, mas cuja presença simbólica é fundamental em Maid. Em determinado episódio, Alex acha forças para reagir a partir de uma amiga que conhece em um abrigo. É por meio de um discurso empoderado de Danielle (Aimee Carrero), que é uma mãe que sobreviveu à violência física do companheiro, que Alex consegue literalmente sair do chão e buscar impulso para lutar pela guarda da filha. Porém, o destino de Danielle serve para nos fazer dar conta que as tramas do abuso e da violência são mais emaranhadas do que faz crer o senso comum.

A essa altura, você pode estar pensando que Maid é pura história de sofrimento. E aqui aparece mais uma qualidade desta bela série: ela nos mostra que, no meio de tanta dor, há também poesia. Como uma flor que nasce no asfalto, Alex também vivencia a beleza. E ela se encontra, sobretudo, na trama tangencial do seu trabalho como faxineira. É a partir desse ofício, considerado menor por tanta gente, que Alex tem a oportunidade de entrar na casa de estranhos e ver que há vida pulsando, nascendo e morrendo, em todos os lugares.

Ela passa, então, a documentar o que vê em um diário. Torna-se testemunha de amores e dores –  casais que se separam estando juntos, mulheres poderosas que não sabem como lidar com a perda de filhos, mães abusivas que trancam e acorrentam seus filhos, idosos que cuidam uns dos outros à beira da morte. É a partir dessa experiência inesperada que Alex, aos poucos, encontra sentido na sua própria existência.

O sucesso que Maid tem feito no mundo todo não é por acaso. É uma série que vai crescendo dentro do espectador, e que permanece com ele quando se encerra. E isso tudo é feito de uma forma muito rica: sem discursos de autoajuda, sem tentar resolver em definitivo a trama de Alex, sem trabalhar no âmbito das respostas fáceis. Bela e feia, tal qual a vida que acontece todos os dias fora das telas.

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