Criogenia: a tecnologia que pode fazer você acordar no futuro

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A ideia de viver para sempre parece permear a imaginação de todas as pessoas. Ainda que nem todos a desejem para si, é muito difícil encontrar alguém que nunca fantasiou uma vida na qual você poderia presenciar todo tipo de acontecimento em um futuro distante. A força dessa ideia foi o que motivou um grande número de cientistas e pensadores, ao longo dos séculos 20 e 21, a desenvolver a teoria criônica, que acredita que a sobrevivência humana pode ser alcançada através do congelamento.

Erroneamente chamada de criogenia, que é a ciência que estuda o congelamento de materiais, a criônica tem como objetivo “preservar” corpos humanos recém-falecidos para reanimá-los na posteridade. Muitos cientistas descartam essa possibilidade como algo mais ligado ao campo religioso do que a ciência, afinal as pessoas são congeladas e ficam à espera de um milagre científico capaz de curá-las de seu estado.

Apesar disso, os diferentes laboratórios criogênicos do mundo estão em franca operação e têm a permissão de seus respectivos governos para funcionarem normalmente. Existem muitas teorias plausíveis nesta área de pesquisa, assim como infindáveis problemas que precisam ser solucionados. O TecMundo decidiu criar um artigo explicando as principais questões e questionamentos que são levantados pela teoria criônica.

A história da criônica

Durante a década de 60, o professor de física e matemática Robert Ettinger escreveu um livro chamado “The Prospects of Immortality” (os prospectos da imortalidade). Neste mesmo período, ele fundouo Instituto de Criônica e a Sociedade Imortalista nos Estados Unidos. A inspiração de Ettinger, como a de muitos cientistas modernos, veio de um livro de ficção chamado o “The Jameson Satellite” (o satélite Jameson), publicado em 1931.

A ideia de Ettinger capturou o coração e a mente de vários entusiastas, que transformaram sua instituição em um tremendo sucesso. A primeira pessoa a ser congelada foi James Bedford, em 1967 – sua câmara, preenchida com nitrogênio líquido, continua funcionando até hoje.

A criogenia é tema recorrente na ficção, e seu uso é a base da trama que dá início à Futurama

Um grande avanço para esse processo de congelamento só chegaria na década de 90, com a invenção da vitrificação. Basicamente, antes de ser resfriado, o corpo recebia uma série de injeções químicas que fazia com que os cristais formados no processo fossem de vidro e não de gelo. Isso reduziu muito o dano celular nos materiais, em custa de acrescentar o problema da toxidade desses elementos, que deve ser solucionado antes de o indivíduo entrar no processo de ressuscitação.

Quando o doutor Ettinger morreu, em 2011, seu corpo foi devidamente congelado, o tornando o 106º homem a ser internado nas câmaras do Instituto Criônico de Detroit. Até hoje, cerca de 200 pessoas já passaram pelo processo e pelo menos o dobro disso está previamente inscrito para se submeter a ele quando morrer.

Como definir a criônica e qual é a sua origem?

Como explicamos previamente, criônica é a prática de preservar corpos humanos em temperaturas extremamente baixas na esperança de revivê-los no futuro. A ideia é que se alguém morrer por causa de uma doença incurável hoje em dia, a pessoa possa ser trazida de volta quando a cura for encontrada. Uma pessoa preservada desta maneira pode ser dita em estado de suspensão criônica.

A criônica não é uma teoria completamente infundada. Ela começou a partir das histórias de pessoas que sobreviveram depois de muito tempo debaixo de lagos congelados. Em alguns casos médicos registrados, indivíduos caíram em águas de baixa temperatura e foram incapazes de emergir devido à camada de gelo. Eles passaram quase uma hora sem respirar por causa da redução de seu metabolismo e funções cerebrais, mas incrivelmente se mantiveram vivos, funcionando em um estado em que quase não precisavam de oxigênio.

Quando o corpo morre, os médicos colocam bolsas de gelo enquanto realizam o processo de vitrificação do organismo.

É claro que a maioria absoluta das pessoas na mesma situação simplesmente morre, mas os sobreviventes foram a inspiração inicial para a ideia. A partir daí, muitos cientistas começaram a fazer experimentos com criogenia, especialmente em animais. É claro que devemos entender que o formato moderno da criônica é um pouco diferente destes casos, já que todas as pessoas que sofreram este processo foram consideradas antes legalmente mortas.

Nos Estados Unidos é proibido realizar a suspensão criogênica em uma pessoa viva. Ou seja, todos os 200 seres humanos depositados em câmaras como aquelas do Instituto Criônico tiveram de ser considerados oficialmente mortos para participarem do processo, mas se eles estão mortos, como eles poderiam ser revividos no futuro?

Segundo as empresas especializadas no assunto, morto e legalmente morto são coisas diferentes. Para estes grupos, a morte “real” ocorre apenas quando toda função cerebral termina, e os criônicos acreditam que preservar este estado mínimo de atividade do cérebro já é o suficiente para trazer a pessoa de volta no futuro.

Provas a favor da criogenia em seres humanos

Todos os exemplos que ajudam a defender a possibilidade do congelamento criogênico em seres humanos ocorreram com seres ainda vivos, o que soa como algo um pouco problemático para os criônicos. No entanto, a confirmação de que organismos vivos foram descongelados com sucesso já é um grande avanço para o campo como um todo.

Afora os casos de humanos que sobrevivem por um tempo avançado embaixo de rios e lagos congelados, é importante notar que os embriões utilizados para a fertilização in vitro são quase sempre congelados e quando retornam deste estado, estão plenamente utilizáveis e geram crianças saudáveis.

Câmaras criônicas em um depósito fictício.

Um dos desafios mais importantes é a plena revivificação de células neurais. Por enquanto, os cientistas têm avançado nessa área e conseguiram trazer de volta algumas redes de neurônios sem danos aparentes. Nesta mesma via, o hipocampo de um rato foi completamente trazido de volta após ser congelado a -132 graus.

Provas a favor da criogenia em animais

Alguns experimentos já conseguiram congelar e reviver pequenos mamíferos desde a década de 50. Ratos que foram colocados em containers com nitrogênio líquido conseguiram voltar à vida sem tantas dificuldades através de um aquecimento especializado, respiração artificial e choques elétricos para reativar os músculos. Infelizmente, nem todos os roedores conseguiram voltar em plenas condições, se tornando inférteis ou diminuindo o seu tempo de vida.

Alguns macacos pequenos, como os galagonídeos africanos, também foram ressuscitados com sucesso durante algumas horas, mas vieram a falecer no mesmo dia. Alguns experimentos decidiram diminuir a temperatura de mamíferos a pontos antes do congelamento, reduzindo drasticamente o metabolismo destes animais. Porcos, que possuem órgãos e uma massa similar à nossa, foram trazidos de volta com sucesso destes estados de quase congelamento.

O nematódeo Caenorhabditis elegans, um parasita que habita árvores e é conhecido como um dos animais com sistema nervoso mais simples do mundo, conseguiu sobreviver ao processo de vitrificação, igual àqueles utilizados por criônicos hoje em dia. Outras espécies que apresentaram resultados positivos ao descongelarem foram sapos (animais de sangue frio reagem melhor ao processo do que mamíferos e aves), bactérias e insetos.

Um tardígrado, artrópode de tamanho minúsculo, conseguiu sobreviver a diversos dias de congelamento intenso (-200 °C) e até mesmo algumas horas a uma temperatura de apenas um grau acima do zero absoluto (-272 °C).

Como funciona o processo?

Se você decidir que quer ser congelado, o primeiro passo é se inscrever em uma instituição que realize o procedimento. Normalmente, a taxa a ser paga gira em torno de 400 dólares por ano. Além disso, você é obrigado a fazer um seguro de vida alto que coloca a empresa como beneficiária, garantindo que ela vá ganhar muito dinheiro com a sua morte. Em outros casos, existe a cobrança de uma taxa de 150 mil dólares para o corpo inteiro e 50 mil dólares para a conservação do cérebro.

Quando seu coração parar de bater, uma equipe em prontidão vai estabilizar o seu corpo e fornecer oxigênio o suficiente para o seu cérebro e o seu sangue para que você permaneça apresentando algumas funções vitais. Durante o transporte até a instituição, seu corpo será colocado no gelo e receberá um anticoagulante potente para que não seque ou enrijeça.

Câmaras Criônicas reais, na Alcor, uma das instituições que realiza este procedimento nos dias de hoje.

Uma vez no laboratório de criogenia, o congelamento real começa. Você não é simplesmente mergulhado em nitrogênio líquido porque as células do seu corpo iriam congelar e quando a água assume este estado, ela se expande, o que simplesmente destruiria as células do seu organismo. Por isso, a equipe retira primeiro toda a água do seu corpo e substitui por um composto químico baseado em glycerol, que é chamado de crioprotetor. O objetivo dele é evitar a formação de cristais de gelo no interior do seu corpo. Este processo, chamado de vitrificação, permite que seu corpo seja emergido em temperaturas muito baixas sem efetivamente ser congelado, permanecendo em um estado de animação suspensa.

Quando a cirurgia termina (em média ela leva 4 horas), o corpo é levado para uma “cama” de gelo onde ele lentamente vai ter sua temperatura diminuída até chegar a 130 graus negativos. Em seguida, o cadáver é colocado em um container e depositado em um grande tanque com nitrogênio líquido em uma temperatura por volta dos 196 graus negativos. Os corpos sempre são conservados de cabeça para baixo para que em caso de vazamento, o cérebro permaneça sempre protegido pelo líquido.

Os problemas da criogenia

Além do problema mais importante, isto é, como reviver os corpos no futuro, a criogenia também apresenta diversas outras questões que a tornam uma “ciência” tão polêmica. Entre elas podemos dizer que os criônicos ainda não têm um plano efetivo sobre como reverter os danos biológicos causados pelo processo de esfriamento, não têm a tecnologia para reverter a vitrificação, que se vale de componentes tóxicos, e depositam todo o seu trabalho na esperança de que no futuro estas coisas terão sido resolvidas.

Ainda falta muito desenvolvimento até que criemos câmaras como as vistas no filme "Alien: o oitavo passageiro".

Outro problema grave é o dinheiro, afinal, a presença da inflação e outras mudanças na economia poderão trazer à vida pessoas que não têm como se sustentar no futuro. Para tentar solucionar isso, os institutos que trabalham com criogenia para pessoas estão criando fundos de investimento com o dinheiro de seus clientes. O objetivo destes é produzir uma renda estável que banque os custos de conservação dos corpos ao longo do tempo e que acumule alguma quantia para os futuros ressuscitados.

Mesmo escapando da pobreza, outros problemas de ordem social podem assolar estes homens e mulheres recém-despertos em uma nova era. Se nos dias de hoje vemos que as gerações mais velhas se sentem muitas vezes inadequadas ao seu tempo, com problemas sérios de adaptação cultural e tecnológica, imagine como seria pior para pessoas que foram congeladas no século 20 e acordadas 100, 150 anos depois?

Um dos melhores retratos deste futuro sombrio e depressivo que pode aguardar as pessoas que passaram por processo criogênicos pode ser visto em “Transmetropolitan”, de Warren Ellis. Nessa história em quadrinhos, muito depois da falência dos institutos criônicos, os governos decidiram manter as pessoas congeladas movidos por um sentimento humanitário. Os revividos experimentam profundos casos de depressão, negligência social e suicídio ao lidar com um mundo completamente diferente do que eles estão acostumados, sem dinheiro e habilidades necessárias para sobreviver nele.

A conferência dos revividos em Transmetropolitan.

Neste mundo, os revividos formam grupos de autoajuda e vivem da esmola que pedem ao resto da sociedade. Apesar de uma ficção, o retrato de Ellis soa perigosamente real com o que poderia acontecer com os grupos de pessoas do nosso século trazidos à vida no futuro. Por enquanto, todo o nosso conteúdo sobre a criônica pertence ao campo da ficção científica e ainda vão demorar muitos anos até que resultados concretos nos levem a crer que esta ideia pode realmente funcionar.

Ilustrações por André Kranz

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