Tangerine: como chegar ao Sundance Film Festival com uma câmera de iPhone

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Imagem: Sundance Film Festival

Tangerine certamente fez um belo barulho em sua passagem pelo Sundance Film Festival. Não por acaso. Afinal, trata-se do tipo de proposta audiovisual que agrada em cheio um festival notório por valorizar ideias e métodos de vanguarda — isso enquanto trata de contar uma história cuja temática dificilmente figuraria entre os filmes de grande porte, muito menos com enfoque semelhante, sem cair em um dramalhão ou em uma comédia de tipos bem conhecidos.

Mas se a busca de duas “profissionais do sexo” da noite de Los Angeles certamente tem seu charme do ponto de vista narrativo, é impossível negar a impressão que se experimenta ao saber que toda a película foi registrada pela minúscula equipe do diretor e roteirista Sean Baker utilizando apenas três iPhone 5S — e suas respectivas câmeras ligeiramente apetrechadas.

Pioneiro no Sundance Film Festival

O feito realmente não foi pouco digno de nota. Afinal, Tangerine foi o primeiro filme inteiramente filmado com o smartphone da Apple a chegar ao Sundance Film Festival — conforme dito, notório reduto de abordagens “alternativas”.

Longe de ter sido apenas uma decisão estilística, entretanto, a escolha de Sean Baker se deu, inicialmente, por conta do baixo orçamento disponível para as filmagens. Não obstante, ele admitiu ao site The Verge que o smartphone acabou se tornando um parceiro perfeito para a realização do longa. “Foi surpreendentemente fácil”, disse o cineasta ao referido site. “Nós nunca perdemos nenhuma sequência.”

Primeiro truque: adaptador anamórfico

Ok, é verdade que há uma boa câmera no iPhone e, via de regra, seria difícil identificar a diferença unicamente por conta disso. Ocorre, entretanto, que a despeito do formato nativo dos vídeos do aparelho, Tangerine foi filmado em proporção de tela widescreen (2:35:1), sempre com ótimos resultados — conforme as cenas desfilam magistralmente pelas ruas de Los Angeles.

Mas é aí que surge o primeiro truque de que Baker e sua equipe lançaram mão. Embora as lentes ditas “anamórficas” representem há tempos uma realidade entre os grandes estúdios cinematográficos — conforme o recurso permitia “distorcer” o formato originalmente obtido nos rolos de 35 milímetros, a fim de acomodar o resultado na tela dos cinemas —, tais aparatos são consideravelmente onerosos. E isso, sobretudo, quanto se é um diretor de cinema com maior quantidade de boas ideias na cachola do que de tostões na carteira.

Dessa forma, foi nesse momento que o Baker decidiu se valer de um acessório tão barato quanto incrivelmente útil. O adaptador anamórfico da Moondog Labs (à época ainda em sua versão protótipo), facilmente acoplado nos smartphones, permitiu que uma área maior fosse filmada, causando a já esperada distorção no resultado — o qual é então corrigido em fase de edição, levando o conteúdo à glória do widescreen.

“Para falar a verdade, eu nem mesmo teria realizado o filme se não fosse por isso”, admitiu o diretor ao referido site. “Tudo foi realmente alavancado para um nível de cinema”.

Segundo truque: um aplicativo de US$ 8

Bem, mas será o adaptador anamórfico suficiente para dar ares de cinema “de gente grande” às filmagens normalmente amadora do iPhone? Talvez sim. Mas Tangerine se valeu ainda de alguns recursos que provam que “a necessidade é mãe da invenção”, como dizem.

Isso nos leva ao segundo truque de que se valeu Sean Baker: o aplicativo FiLMiC Pro. O software de apenas US$ 8 (com um equivalente gratuito) garantiu o controle da granulação, de abertura da lente e também da “temperatura” das cores.

Terceiro truque: steadicam

Por melhor que seja a câmera a que se tenha acesso, há pelo menos uma limitação difícil de se mudar na cinegrafia: as mãos humanas tremem. Naturalmente, em equipamentos mais parrudos isso é minimizado pela própria estrutura. Entretanto, tratando-se de algo tão pequeno quanto um iPhone 5S, é certo que mesmo o mais controlado dos cinegrafistas acabará provocando aquelas “tremidas” tão associadas a filmagens amadoras.

É aí que vem o terceiro truque de que se valeu Sean Baker: o steadicam. Na verdade, um truque relativamente antigo, já que a primeira geringonça acoplável em câmeras para dar estabilidade surgiu em 1975, em uma concepção do cinegrafista estadunidense Garrett Brown.

Uma das possibilidades no mercado: modelo de steadicam da marca Stiffen, projetado para o iPhone.

“Esses telefones, por serem muito leves e pequenos, acabam invariavelmente tremendo na mão humana, e isso não ficará bom”, comentou o diretor. “Dessa forma, você realmente vai precisar de um steadicam para estabilizar a imagem.”

Pós-produção alaranjada

Naturalmente, nenhum longa-metragem que se preze é concluído após as filmagens. Em relação a Tangerine, de fato, ficam também óbvios que a técnica, em suma, representa apenas parte da equação — ficando o restante para o bom gosto e para certa propensão em arriscar com novos formatos.

E foi em sua fase de pós-produção que Tangerine, de fato, ganhou o seu nome. “Em muitos desses filmes sociais realistas, a primeira coisa que se faz é ‘drenar’ as cores”, contou Baker ao The Verge. “Nós tomamos a direção oposta. Nós saturamos as cores até não poder mais — já que o mundo [do filme] é incrivelmente colorido, as mulheres são cheias de cores”, acrescentou o cineasta. “Nós quisemos combinar com isso.”

A cor dominante na pós-produção? O alaranjado, que acabou por batizar o filme. Por fim, restou à equipe apenas aplicar certa granulação (digitalmente) ao resultado, a fim de aproximar Tangerine da linguagem visual mais comumente associada aos filmes para cinema.

“Ainda é preciso entender de cinema”

Talvez o fato de Tangerine ter sido inteiramente filmado em um iPhone possa deixar uma falsa impressão de amadorismo. Longe disso. “Você ainda precisa saber como funciona o processo de edição”, frisou Baker ao referido veículo. “Ainda é necessário saber como o som funciona e ainda é preciso saber lidar com a câmera. Não basta sair por aí e filmar.”

Em suma, mesmo para filmar com um aparelho de US$ 550 ainda é necessário ter familiaridade com o conhecimento desenvolvido “em 100 anos de história do cinema”.

Drama à la Sundance

Tangerine conta a epopeia de uma prostituta e de um travesti que, após descobrir que seu namorado dormiu com uma “mulher biológica”, parte em busca do sujeito para tirar satisfações. Não obstante, o que poderia ser uma abordagem estilo “torta na cara” e trejeitos estereotipados ganha sensibilidade, conforme a trama se aprofunda pelos meandros (e perigos) de um típico distrito da luz vermelha.

De acordo com o diretor, a ideia por trás do longa era alimentada desde a infância, ocasião em que morou em lugar bem semelhante, no entorno de uma loja de rosquinhas. “Era um canto realmente caótico — sempre havia algo acontecendo por lá”, disse Baker, cujo roteiro ganhou forma após uma visita a um conhecido centro de prostituição de Los Angeles.

Dali veio não apenas a inspiração para a trama, mas também as duas atrizes que estrelaram o filme, Kiki Kitana Rodriguez e Mya Taylor — cujas histórias reais de vida alimentam os tons alaranjados de Tangerine. “As pessoas gostam de ouvir histórias, sobretudo os cineastas”, brincou Taylor. De fato.

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