Por que precisamos que os robôs pareçam humanos para termos medo deles?

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Os possíveis riscos que o desenvolvimento de máquinas com inteligência artificial pode trazer para os humanos assombram muita gente. Isso é refletido na quantidade imensa de obras de ficção – seja no cinema, na literatura, nos games etc. – que tratam desse assunto: um dia, as máquinas podem se rebelar contra seus criadores e, quando esse dia chegar, o bicho vai pegar para todo mundo.

Pensando rapidamente nessas histórias, a imensa maioria delas coloca o homem na mira de androides – robôs no formato de seres humanos – que, fazendo uso de sua inteligência artificial e da ausência de “fraquezas” (tanto físicas quanto emocionais), decidem impor seu domínio sobre as pessoas ou, vendo por um outro ponto de vista, libertarem-se do controle humano.

É isso que acontece em filmes como “O Exterminador do Futuro”, séries como “Westworld” e no game para PlayStation 4 “Detroit: Become Human”, onde robôs que se passam por perfeitos seres humanos entram em conflito com pessoas reais por uma série de motivos. Pensando bem, com o tanto que já se fala por aí de inteligência artificial, realmente dá medo.

roboRobôs tomam consciência na série "Westworld"

Medo de que?

Não podemos, porém, nos esquecer de histórias com ameaças que envolvem dispositivos com inteligência artificial, mas que nada têm a ver com o formato humano. Ou seja, robôs inteligentes e mal-intencionados, mas que não são androides.

Existe alguma coisa que faz com que tenhamos muito mais medo, receio, repulsa, desconforto – ou como você preferir chamar – de robôs que pareçam com a gente

Entre os casos mais clássicos, podemos nos lembrar do HAL-9000 do filme “2001: Uma Odisseia no Espaço” ou mesmo as máquinas da trilogia “Matrix”. Apesar de assustadores, pois a trama das obras nos faz entender que esses dispositivos são perigosos, o imaginário humano enxerga muito mais risco em androides, os robôs que possuem não apenas formato, mas feições humanas.

Existe alguma coisa que faz com que tenhamos muito mais medo, receio, repulsa, desconforto – ou como você preferir chamar – de robôs que pareçam com a gente. E quanto mais parecidos, mais perfeitos, mais assustadores ele acabam sendo. Afinal, você sabe por que precisamos que os robôs se pareçam humanos para termos medo deles? Ou melhor: o que há em androides que faz a gente se sentir... estranho?

2001 uma odisseia no espacoA inteligência artificial HAL-9000 tem que ser desativada para não matar os tripulantes de sua nave em "2001: Uma Odisseia no Espaço"

O Vale da Estranheza

Ainda nos anos 1970, um professor japonês de robótica chamado Masahiro Mori foi capaz de identificar esse fenômeno psicológico que batizou como Bukimi no Tani Gensho, algo que pode ser traduzido para o português como “Fenômeno do Vale Misterioso”. Essa ideia foi levada para o mundo ocidental pela primeira vez em 1978 em um livro norte-americano que traduziu o nome do efeito para Uncanny Valey e, por consequência, para o português como Vale da Estranheza.

O Vale da Estranheza é a hipótese de que as réplicas humanas que parecem quase, mas não exatamente, como seres humanos reais suscitam sentimentos sinistros

No ramo da estética de filosofia, o Vale da Estranheza é a hipótese de que as réplicas humanas que parecem quase, mas não exatamente, como seres humanos reais suscitam sentimentos sinistros e de repulsa (ou estranheza) entre os observadores. Esse “vale”, na verdade, indica uma queda brusca na afinidade do observador humano com a réplica, mas que volta a aumentar conforme a semelhança da cópia fica ainda mais próxima do humano real.

grafico vale estranhezaO gráfico mostra alguns exemplos de "réplicas" humanas e como nós sentimos familiaridade por eles em relação ao quanto parecem reais

Ao mesmo tempo em que Sophia é impressionantemente realista, ainda é possível notar que ela não passa de um androide. Isso faz com que você caia no Vale da Estranheza

Isso serve para todos os tipos de representações humanas que buscam realismo extremos, como em bonecas, modelos em 3D de computação gráfica, manequins e, claro, androides. Segundo Mori, quanto mais um robô se parece com um humano, distanciando-se de uma forma de máquina, a resposta emocional das pessoas fica cada vez mais positiva e empática até um ponto em que ela cai totalmente, gerando desconforto, para depois voltar a agradar conforme se aproxima da semelhança perfeita.

Para tirar a prova, basta assistir ao seguinte vídeo – trata-se do robô Sophia, criada por David Hanson, CEO da Hanson Robotics. Ao mesmo tempo em que Sophia é impressionantemente realista, ainda é possível notar que ela não passa de um androide. Isso faz com que você caia no Vale da Estranheza, sentindo-se desconfortável ou assustado com o robô falando, fazendo expressões faciais e interagindo com humanos:

As expressões de surpresa, raiva, alegria e outras que Sophia faz levam a gente a ter uma espécie de “pane” cerebral, pois é claro para nós que se trata de um robô, mas em certos momentos as expressões e a aparência do androide são de uma familiaridade impressionante, levando a gente a se assustar ou se sentir desconfortável ao interagir com Sophia.

Estranho, mas familiar. Familiar, mas estranho

“O inquietante” é uma sensação psicológica de que algo é estranhamente familiar em vez de apenas misterioso ou desconhecido

Essa familiaridade pode ser compreendida por meio de um fenômeno psicológico que só foi ligado a esse efeito por uma coincidência. Quando o estudo de Masahiro Mori foi traduzido para o inglês para ser citado no livro “Robots: Fact, Fiction, and Prediction”, de Jasia Reichardt, e o efeito ganhou o nome de Uncanny Valley, imediatamente ele foi identificado com o conceito estudado por Ernst Jentsch e Sigmund Freud que se chama uncanny e que em português é conhecido como “o inquietante”, “estranho-familiar” ou “inquietante estranheza”.

“O inquietante” é uma sensação psicológica de que algo é estranhamente familiar em vez de apenas misterioso ou desconhecido. O fenômeno pode descrever incidentes, por exemplo, onde um objeto ou ato cotidiano é experimentado em um contexto inquietante, alienante ou que seja um tabu. Essa experiência é acompanhada de um efeito desconfortante e muitas vezes leva a uma rejeição total do objeto.

Por que isso acontece?

O que ninguém ainda sabe direito é o motivo para isso acontecer. Apesar de algumas pessoas serem imunes ao efeito, a grande maioria das pessoas sente o fenômeno com maior ou menor intensidade, mas ele está lá sempre que vemos a representação de algo humanoide que se aproxima bastante – mas nem tanto – da realidade.

O Vale da Estranheza pode acontecer no limite entre um objeto ser identificado como não humano e humano

Stephanie Lay, uma das maiores estudiosas na área, afirma que existem diversas – pelo menos sete – explicações para o porquê de isso acontecer, mas em sua experiência com o Vale da Estranheza mostrou que três delas são mais plausíveis para explicar o desconfortável fenômeno.

Segundo Lay, o Vale da Estranheza pode acontecer no limite entre um objeto ser identificado como não humano e humano, ou seja, assim que ele atinge um nível de realidade onde nosso cérebro passa a deixar de vê-lo como alguma outra coisa e o identifica como sendo humano, é a hora que caímos no vale. Essa teoria foi testada usando manequins que tinham seus rostos alterados gradativamente para um rosto de uma pessoa real. O vale era atingido quando a face passava a ser vista como a de uma pessoa real e não inanimada.

manequimManequim realista, bonito, mas... incomoda um pouco

A segunda teoria mostra que esse fenômeno pode ser despertado quando somos capazes de acreditar que as criaturas quase humanas podem ter uma mente como a nossa. Isso foi mostrado em um teste onde as pessoas se sentiam nervosas quando achavam que androides diante deles podiam ter certos tipos de experiências sensoriais.

Esse comportamento pode ser ligado às ações de um psicopata, o que inconscientemente nos causaria repulsa

Por último, há a tese de que o fenômeno Vale da Estranheza é alcançado pelas pessoas quando há um desajuste, ou uma falta de sincronia, nos aspectos da criatura que a tornam próximas de um humano real, como quando demonstram expressões faciais em parte sérias, em parte alegres ao mesmo tempo, ou quando emitem voz sem uma sincronia perfeita de movimento da boca etc. Stephanie Lay acredita que esse comportamento pode ser ligado às ações de um psicopata, o que inconscientemente nos causaria repulsa.

Tudo muito estranho

Seja como for, é por esse fenômeno ainda inexplicado que nos sentimos desconfortáveis com androides realistas, bonecas, manequins e até desenhos e modelos em CG ultraestranhos – um conflito entre impressões contraditórias que são, ao mesmo tempo, humanas demais e obviamente falsas.

Caso você ainda não tenha entendido o que é esse fenômeno chamado Vale da Estranheza, confira na galeria a seguir algumas imagens de formas humanas que se aproximam da realidade, mas não o suficiente. Quantas delas deixam você desconfortável?

Ainda assim, caso você tema pelo futuro da humanidade por causa dos avanços da inteligência artificial e se assusta com casos como a IA do Facebook, que criou sozinha uma linguagem para se comunicar, ou a do Google, que tem os sonhos mais horripilantes, não se esqueça que as máquinas que não se parecem com humanos também podem ser assustadoras...

...afinal, se elas não resolverem ganhar autonomia e declarar guerra contra a humanidade, elas podem, no mínimo, roubar o seu emprego em um futuro breve.

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